Chá das Quintas entrevista Sol Alves
Tatiana Hilux // Como surgiu o desejo de militar pela causa trans? Sabemos que há muitas meninas que não dão a cara à tapa.
Sol Alves // Meu nome é Sol Alves de Lima, formada em humanidades, graduanda em Antropologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Tenho 24 anos, branca, me identifico como trava não-binária e residente na cidade de Pacatuba. Bem, o desejo não surgiu de um desejo em si, mas de uma necessidade. De certa forma, de um sentimento de revolta, por presenciar um CIStema tão violento com as corpas trans/travestis, pois se pegarmos o último dossiê de assassinatos e violência contra Travestis e Transexuais Brasileira 2020 vamos ver que o Ceará é o segundo estado com mais assassinatos de pessoas trans desde 2017. Durante o ano de 2020, o Ceará chamou atenção das mídias pelos recorrentes casos entre julho e agosto, somando nove assassinatos somente nesses dois meses. A minha necessidade de participar de movimentos sociais e de estar na universidade é para exigir que vidas de trans e travestis sejam resguardadas. A minha formação me possibilitou conhecer inúmeras travestis que falam a partir de si mesmas e isso me encorajou muito, como a Keila Simpson (BA), travesti presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). A militância para uma corpa trans/travesti é inevitável. Devemos entender que nossas corpas são políticas e que desafiam a um CIStema e uma lógica de mundo cisgênera limitante. Portanto, a minha participação, tanto em movimentos sociais, como na própria universidade, é para que tenhamos possibilidades de vidas: vidas estas que sejam respeitadas e que tenham direito à vida, ao mercado de trabalho, à educação, à família, à saúde, à afetividade, à dignidade e a um futuro possível.
Tati // Você é muito jovem, mas bem decidida! Como você lida com o preconceito?
Sol // Olha, o preconceito é algo que presenciei muito cedo: olhares demorados sobre mim, rejeição ao meu modo de ser… Mas fui uma criança muito feliz e espontânea. E carrego essa criança comigo. O meu maior desejo é que possamos construir uma sociedade saudável, ou seja, que qualquer tipo de estrutura opressora, seja ela racista, machista, transfóbica ou capacitista possa se deteriorar e chegar a um fim. Eu não suporto a ideia de viver num mundo limitado. O que me encanta neste mundo é a diversidade, por isso escolhi fazer antropologia, que nada mais é do que a ciência da humanidade no sentido mais lato, que engloba origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural, além de fisiologia, psicologia, costumes sociais, crenças etc.
Tati // Há inúmeros tabus na sociedade em torno da sexualidade. Qual é a origem dessas incongruências na sua opinião?
Sol // Posso afirmar de primeira que o próprio desconhecimento do mundo em que vivemos. É triste perpetuar um pensamento tão pequeno. Sexualidade é algo instintivo, é a nossa natureza. Nessa perspectiva, somos os únicos animais a classificar normas como a heteronormatividade. O termo “homossexualidade” data de antes do uso cunhado de “heterossexualidade” porque se precisa do “desvio” para validar a norma. Como poderia existir o conceito de heteronormatividade, heterossexualidade e/ou hétero-cis-sexismo se não houvesse a contradição de tais paradigmas tão sólidos e estáveis? Contudo, o meu papel como pesquisadora nessas áreas específicas do conhecimento é ir quebrando esses tabus e ir levando conhecimentos através de formações específicas em escolas. Eu mesma, num projeto de extensão, levava para as escolas de ensino médio, próximas da Unilab, formações sobre essas questões de gênero e sexualidade. Eu sempre me colocava no lugar de escuta. Essas novas gerações estão com tudo, no sentido de não se calarem ou se submeterem a algo tão violento que é negar a própria corporalidade e/ou sua sexualidade.
Tati // Sol, menina, mulher… Como tem sido a sua transição? Você tem acompanhamento?
Sol // A minha transição, de certa forma, tem sido de dentro pra fora, pois não é fácil ir contra algo tão compulsório quanto as normas de gêneros. Dessa forma, a minha transição tem sido me conhecer: quem sou eu, quais são as minhas possibilidades? Pretendo, sim, fazer uso de hormônios e ser acompanhada por um endócrino, mas no momento não tive a possibilidade de ter acesso a esses serviços. Mas devemos lembrar que a travestilidade é múltipla nem todas têm a vontade de fazer a terapia hormonal. Não é isso que define uma travesti, mas as que têm vontade, assim como eu, precisam ter acesso adequado aos suportes.
Tati // Me fala sobre o amor… Seu coração está ocupado ou está recebendo currículos?
Sol // Ah, o amor! É algo que cultivo muito em mim. Tive que aprender que existem outras maneiras de amar, e não somente aquela que nos foi vendida pelo amor romântico. Mas não posso deixar de citar o descarte de nós, corpas trans/travesti, na questão afetiva. Pois foi vendida uma ideia que nós não merecemos amor. Entretanto, Renata Carvalho, que é atriz-diretora-dramaturga-transpóloga, graduanda em Ciências Sociais, sempre evidencia a questão de que beija sua travesti em praça pública. E é sobre isso. Chega! Precisamos mudar o pensamento de que não somos corpas válidas. Eu só posso imaginar um futuro sendo diverso, para que o amor seja cultivado por todes.
Tati // Como você se vê daqui a cinco anos?
Sol // Quero me ver feliz e realizada. Me vejo sendo uma extraordinária antropóloga. Espero que meus trabalhos modifiquem vidas, assim como fui atingida pelos trabalhos de inúmeras professoras que estiveram em minha trajetória. Eu quero ser amor! Eu quero ver as portas abertas para todes, ver um país prospero. E que a extrema direita não tenha vez para propagar suas ideias violentas que tanto atingem a minha população. Neste futuro, que nenhuma travesti seja morta por ser travesti, que Deize esteja conosco, com todas nós.
Tati // Gratidão imensa pela atenção e disponibilidade! Escreva uma mensagem para nossos leitores do Bemdito, por favor.
Sol // Aos leitores do Bemdito, evoco forças e esperança que possamos sair desta crise sanitária, civilizatória e humanitária. Que não nos esqueçamos de quem somos. Eu desejo amor e que ele nunca seja utópico. Fortaleça sua rede de resistência! E deixo como indicação musical a canção de Luedji Luna, “Lençóis”, em que ela diz: Minha amada / Quando mira as estrelas / Pela miríade dos seus olhos mansos / Desperta tanto brilho, tanta beleza / Que não se perde em certezas / Só tem dança, alegria, água e amor.