Bemdito

Carta para Aimée

A tentativa de preencher lacunas de um amor registrado em dedicatória, memória de outro tempo
POR Carolina Mousquer Lima

“As coisas  estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer;  a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, – seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.”
Rainer Maria Rilke

Aimée,

Não nos conhecemos, mas teu livro do Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, acabou chegando em minhas mãos. Comprei em um sebo simpático, o Tucambira.

“Foi no dia em que muito pensei em você, que comprei este poema, que diz do amor, da solidão e do eterno caminho. Eu não sei direito onde este eterno caminho está me levando, mas, sua presença ilumina e o presenteia com muito amor”. 

Que linda dedicatória o Paulo te fez. Por que será que ele tinha pensando muito em ti nesse dia? Vocês eram namorados? Como teu livro foi parar no sebo? Será que tu morreu e alguém entregou teus livros lá? Tem várias frases sublinhadas nele. Aliás, foi como comecei a ler. Li só as frases que tu destacou. Só depois é que fui ler o livro todo. Será que já nos cruzamos em alguma rua?

Eu invento vida para pessoas que não conheço. Estou aqui a inventar histórias para ti nas lacunas do que não tenho como saber. Tenho essa mania desde pequena. Busco pistas, detalhes, traços, miudezas. Adoro ouvir os pedaços de conversas que chegam da mesa vizinha do restaurante, um desconhecido falando no celular, e observar pessoas sentadas no ônibus. Quem são essas pessoas? Para onde elas vão? De onde ela estão vindo? A invenção é filha do que não sabemos e nasce, sempre, acionada por um detalhe.

Nessa observação do mundo, vejo que algumas pessoas têm muita necessidade de certeza. Elas ficam tentando expulsar de dentro de si o que não sabem. Não é um desperdício de vida isso? Uma luta ingrata e perdida de início. Não que as lutas falidas não me interessem. Ao contrário. Tenho um carinho especial pelo fracasso e acho uma coisa muito sem graça essa sociedade do sucesso. Mas acho que a vida é muito especial para perder tempo em apostas bestas como essa de busca de certezas.

Prefiro quando as pessoas se deixam levar sem saber muito bem para onde – como o Paulo te disse na dedicatória. Porque quando a gente consegue acolher e cuidar do que a gente não sabe é como se a gente fosse cultivando um jardim interno. Plantamos perguntas. E quem planta pergunta, não colhe certezas. Colhe possibilidades. Possibilidades de diferentes cores: cor de hipótese, de invenção, de criação, de pensamentos complexos. Logo em seguida aparecem as primeiras lagartas, minhocas e formigas.

E depois que o jardim cresce e se espalha feito mato, grileiro nenhum derruba. Pode até sofrer umas queimadas da vida. Mas ele sempre renasce. Basta regar. Eu trouxe para a idade adulta esse faz de conta. É meu jeito de brincar. 

Estamos agora em uma pandemia. Não sei se tu também vive este momento. Seria uma longa explicação. Talvez tu nem acreditasse se eu ou alguém te contasse isso lá em 1980, quando o Paulo te deu o livro. Mas o que eu queria mesmo te dizer é que não podemos reunir pessoas presencialmente. Então, agora os seminários e reuniões de trabalho são online. É engraçado. Volta e meia uma colega está falando na tela e eu estou prestando atenção nos quadros da casa dela, pensando se ela mora sozinha, se aquele quadro foi recebido como um presente.

Confesso que às vezes me entrego sem resistência a esse infantil que me habita. É um jeito infantil de conhecer o mundo e, nesse caso, o mundo daquela outra pessoa que fala. As crianças exploram todos os objetos da casa: abrem armários, colocam tudo para fora, futricam estantes. Elas querem saber como são as coisas, como são por dentro. E elas estão certas. Porque não conhecemos ninguém só pelo que essa pessoa fala. Conhecemos também pelo entorno que ela cria. 

Acho que invento vida para as pessoas porque, no fundo, nunca me conformei de ter uma única vida. Sempre soube que viver uma vez seria pouco tempo para tudo que há por conhecer e sentir. Há tantas coisas que deixamos de ser! Basta nascer para isso. Por exemplo, quem nasce primeiro nunca saberá como é ser o caçula. E a verdade é que uma só vida não me basta. Então encontrei esse jeito de dar uma tapeada no assunto. Acho que transformei a curiosidade por vidas que nunca viverei nessa espécie de ofício que é ser psicanalista. É paradoxal. A cada paciente eu sinto que vivo, um pouquinho, uma outra vida e, ao mesmo tempo, me encontro com o impossível de ser outra.   

Agora tu me pergunta de onde vem isso. Eu desconfio que tenha sido do meu nome. Nosso nome carrega algo da nossa história. Tu deve saber disso. Por que será que teus pais escolheram Aimée? Significa amada em francês. E pelo visto cumpriste esse desejo dos teus pais: foste amada. Será que tu era brasileira? Aimée foi o nome fictício escolhido por Lacan para uma paciente sobre a qual ele escreveu a sua tese de doutorado. Costumamos dizer “o caso Aimée”. Não é muito maluco que uma psicanalista lacaniana tenha recebido teu livro? O meu nome foi inspirado na música do Chico Buarque. Carolina, a moça dos olhos tristes que guarda o amor que já não existe. Aquela que não vê o tempo passar na janela. Recebi o aviso e luto para me manter atenta e de olhos bem abertos.

Por falar em nome, também assinei nosso livro. E quem chegar depois da gente, vai se juntar a nós nesse mistério. Quem foi a Aimée? Quem foi a Carolina? Uma pergunta que nem nós saberíamos responder. Pois quando dizemos o que somos, já somos outra coisa. As palavras nunca dão conta de encerrar o que se é. Vejo muita gente adoecer e empobrecer de tanto buscar um “eu verdadeiro”. É fácil cair nessa armadilha, porque como neuróticos sempre queremos acreditar que somos uma unidade autônoma e que o amor que nos dedicam é exclusivo.

Que grande equívoco! A declaração de amor do Paulo foi para ti, mas acabou chegando em mim, iluminando meu dia. E acho que ainda chegará em mais alguém, depois de mim. O amor tem esse poder estranho de se espalhar por aí. Mesmo que tenha ficado guardado por anos em uma folha de livro. Volto ao Chico: “o amor não tem pressa. Ele pode esperar em silêncio, no fundo de um armário, na posta restante. Milênios no ar. Futuros amantes quiçá se amarão sem saber com o amor que um dia deixei para você”.

O amor de vocês agora resplandece na minha estante. Prometo cuidar bem dele. 

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.