Bemdito

Carta para um garoto perdido

Da timidez ao grito nos palcos, da dor ao alívio nas letras, Kurt Cobain era um homem de sensibilidade sem concessões
POR Camille C. Branco

Kurt,

Meu adorado menino… Nós temos a mesma idade no momento em que eu escrevo esta carta. Os mortos não comemoram aniversário. Então, você será para sempre aquele rapaz de 27 anos, incrivelmente mal vestido e furioso, com o coração despedaçado nos palcos do Nirvana. Há outras coisas em comum entre nós, que eu reúno como miçangas. Eu nasci no mesmo ano em que você decidiu que a vida devia chegar ao fim, aquele 1994 em que o Brasil vencia a Copa. Nascemos sob o mesmo signo solar, ambos piscianos, signo de artista sofrido. Dizem que Peixes é a última encarnação na Terra, então você tinha – e eu tenho – a obrigação de aproveitar.

Acho bom começar tirando o suicídio do caminho, porque parece que em imensa medida você foi definido por isto, o que acho trágico. Eu gostaria, sinceramente gostaria muito, que você tivesse adiado esta decisão por mais um dia, uma semana, um ano, uma vida. Mas eu tenho respeito pelos mortos e pelos motivos deles. Só posso imaginar a dureza de, com apenas 27 anos, incerto entre a juventude e a vida adulta como agora eu mesma me sinto, ser eleito um messias, a voz de uma multidão sedenta por um pedaço seu. Você era tímido, como eu mesma sou, só gritava quando te davam uma guitarra e um microfone. Era mesmo um fardo grande. Conheço pouca gente que suportaria. Mais do que isso, desconfio dessa gente, tenho ressalvas com qualquer pessoa que esteja à vontade demais em posições messiânicas. Vejo nisto traços de tirania.

E há também a história do vício. Dizem que a heroína é uma droga praticamente impossível de abandonar. Tanto porque o prazer é muito intenso, quanto porque quando você para o seu corpo descompensa e você sente que vai morrer. Eu sei que você tinha muita vergonha de ser viciado. Que sofria pelo fato de as drogas serem associadas à sua imagem pública. Mas você foi uma criança com o coração partido. E, adulto, não conseguiu remendá-lo. Pessoalmente, eu não resolvi esse assunto com uma seringa no braço. Mas também não o resolvi e ponto. Talvez – e eu só posso imaginar – nesses momentos você sentisse alívio temporário. E sei como a gente pode esticar os limites querendo alívio. Tem gente que mataria e morreria por alívio.

Mas o que mais me impressiona e me motiva a escrever essa carta, aquilo que verdadeiramente me tocou quando eu era adolescente e ouvia as canções do Nirvana, é mesmo a sua sensibilidade sem concessões. Vejo fotografias de você, um homem lindo, brincando com gatinhos, com o cabelo pintado de vermelho, com sua filha no colo, ou se divertindo com óculos que te deixavam parecendo um inseto gigante e penso, penso sem parar, sobre como essa pessoa conseguiu entrar no estado emocional necessário para escrever as coisas que você escreveu. Porque o tipo de ambiente sentimental que você retratou, Kurt, eu aguento sentir por apenas umas duas horas. Então, eu preciso parar, eu preciso sair, porque se torna insuportável. Você não. Você teve a bravura necessária para eternizar esse lugar desolado no papel, na gravação dos acordes, na apresentação em um show. As zonas que eu sou capaz apenas de visitar, você conseguiu cristalizar como uma cidade, um prédio. Como você foi capaz? O que isto te arrancou?

Eu sei que quando a gente nasce em uma família difícil – uma expressão genérica, espécie de guarda-chuva onde cabe uma miríade de horrores – vivemos em uma espécie de pacto coletivo de “não fale, não pergunte” e isto deixa uma marca durável de vergonha. E sei que você, um misantropo contraditório (e que riqueza contém essa contradição), acreditava que, conseguindo provar que tinha talento, curaria também essa ferida de auto aversão. Compôs canções tentando se salvar. Muitas vezes, quanto maior o dilaceramento traumático, mais urgente e megalomaníaca pode se tornar a busca por restituição. Você não queria ser esquecido. Você não queria viver sentindo dor e, pior ainda, tédio. Não é pelo que você suplica, em uma de suas canções mais famosas: eu estou aqui, me entretenha?

Consigo entrever partes do percurso criativo na leitura dos seus diários. Eles foram liberados e publicados, não como transcrições, mas como digitalizações das páginas. Então, é possível ver os caminhos da sua caligrafia no papel, os seus desenhos, a forma como você ia construindo a letra de uma canção. Mas ainda assim, este tipo de intimidade não explica a criação de um verso como “eu sou tão feio, mas tudo bem, porque você também é. Nós quebramos nossos espelhos”. Existem cantores, como o Leonard Cohen, a quem eu amo muito, que sinto serem profundamente humanos. Cohen escreveu sobre amor, sobre guerra, sobre Deus, sendo um homem, com os pés aqui. Você não. Você parecia ter descido na estação errada. Parecia fora de lugar nesse mundo. E quando, em 94, você pegou aquela espingarda, acho que você estava tentando voltar. Voltar para a Terra do Nunca, para o lugar de todos os meninos perdidos.

Nós temos a mesma idade quando eu escrevo estas palavras. Você foi embora e deixou para trás uma filha, agora adulta, e um legado artístico que mudou o mundo. Não se pode dizer que você não aproveitou sua última encarnação como deveria. Mas eu ainda estou aqui, Kurt. Pisciana como você. Magoada como você. Não tenho interesse em deixar filhos. E tenho medo deste tipo de fama que te atingiu. Então, o que acumulei foram alguns escritos, pesquisas, alguns feitos de criança prodígio e a continuidade do fascínio pelas suas canções. Eu tenho um amigo, que, entre tantos apelidos que já me deu, passou um tempo me chamando de Wendy. Um dia me mandou um áudio dizendo “eu virei um pirata, Wendy!”. Eu gosto muito deste apelido em especial, porque Wendy conseguiu transitar entre o mundo real e a Terra do Nunca por toda a vida. Ela ensinou os Garotos Perdidos a não temerem a passagem do tempo. Eu espero ter esse tipo de sabedoria e paciência. E eu espero, espero de verdade, que você tenha encontrado paz. Obrigada por ter ardido.

Com amor,

Camille

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.