Bemdito

Uma carta para Caio F.

Uma crônica, uma resenha, uma foto ou uma forma de plantar morangos vivos e vermelhos
POR Iana Soares

Caio, 

Escrevo seu nome no topo da página e logo o presente do verbo me derruba. Sim, caio. Começo assim. Quero ver na queda uma aptidão para, de alguma forma, organizar as palavras depois das ameixas, do caixão, das árvores, dos morangos, do cigarro, da caixinha de música, da loucura, da morte, dos relógios e de cada gesto imaginado por você. É do chão que lhe escrevo. 

Há dois dias, ouvi da minha analista que estou desanimada. Iana, você está desanimada. Ela não costuma dizer se eu estou assim ou assado, ainda mais usando logo um adjetivo e não uma metáfora, uma chave, uma imagem. Uma pergunta. Me disse isso antes de repetir a frase de sempre: nos vemos na próxima quarta, até lá, xau, xau. Eu disse que, sim, estou mesmo, fulana. Para cercar o estado atual das coisas, o meu estado, tenho repetido que estou “cansada” ou “de saco cheio”. Com frequência, narro a iminente vontade de fugir para as montanhas, meio Elis na casa do campo, meio você e Hilda na Casa do Sol. Fantasio com um parente rico e generoso que, subitamente, me faz herdeira. Estou sem muita disposição, coragem, lá vou eu enfileirar os sentidos até chegar ao latim e à alma. Ânima. 

Há duas semanas, tenho acordado sempre às 5h30 para aprender algo novo. Ainda no escuro, cheiro o cangote do meu amor, que está pingando de suor depois de mais uma noite nos trópicos sem ar-condicionado, tomo um banho gelado, penteio os cabelos com os dedos, visto alguma roupa que deixei pendurada por ali. Em seguida, desço três vãos de escada, desvio das poças d’água, dou bom dia ao rapaz que tira as grades do posto de gasolina. São sete quarteirões ou 938 passos até chegar ao Celta branco cheio de improvisos.

Agora tenho de lidar com a possibilidade de atropelar uma senhora e seu cachorrinho que passeiam no meio da rua na mesma hora em que aprendo a colocar o pé na embreagem, passar a primeira, acelerar um pouquinho, passar a segunda, ligar a seta, dobrar à direita sem invadir a outra pista. Se no começo eu só conseguia pensar que, com esta nova liberdade, posso matar alguém, agora na 17a aula já consigo fazer ladeira, baliza e até entrevistar o instrutor no banco do carro enquanto dobro à direita com uma curva fechada.  

O instrutor aprendeu a dirigir com 15 anos e, depois de ver uns vídeos na internet, passou a arriscar uns cavalos de pau na madrugada. Agora, aos 32, usa aparelho nos dentes e também tem ferros no cotovelo, colocados depois de estraçalhar o braço em um acidente de moto. Ficou internado no IJF e, no meio da confusão, terminou um namoro de sete anos. Um ano depois, publicou uma foto com uma moça nova e a antiga foi tirar satisfação. Um mês depois ela estava grávida, a antiga. Tiveram gêmeas. O instrutor também é gêmeo. Me mostra as fotos no mesmo celular em que escuta forró, reggae, poesia cantada, piseiro, e manda mensagens de áudio para algum novo amor ou esquema, não sei. Tudo isso às 6h10. 

Aí, entre o desânimo e o Código Brasileiro de Trânsito, vou parar em um encontro cheio de psicanalistas. Foi a Maria José, da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza, quem me convidou  para comentar dois contos seus em um evento sobre arte e psicanálise. Pera, uva ou maçã? e Caixinha de música, do livro Morangos Mofados, um dos teus maiores sucessos, publicado há quase 40 anos. Eu devo ter lido algo seu aos 16, pela primeira vez. Na estante, achei uma versão publicada pela editora Agir em 2005. De lá pra cá, já reeditaram muitas coisas suas, principalmente em 2018, quando você faria 70 anos. Faço as contas na ponta dos dedos e me perco. 

Conheci Maria José em um módulo de escrita e leitura de crônicas que ministro na Especialização em Escrita e Criação, da Universidade de Fortaleza (Unifor). Vão ler uma “minibio” no começo da conversa, não preciso repetir tudo agora. Fotografo há 12 anos e escrevo desde sempre. Esta semana me chamaram de escritora e fiquei ali segurando aquela palavra entre os dedos. Sigo aqui olhando pra ela e o escuto dizer, como fez com o Zezim, “você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem de escrever?”. Preciso voltar aos morangos.

Tudo que disse até aqui é sobre os morangos, a caixinha, as árvores, você sabe. Todos têm repetido que você é muito atual, dos suplementos literários ao Facebook. Você já deve ter chegado ao Tik Tok, inclusive. Estamos em uma pandemia, no Brasil de Bolsonaro. No Brasil de muita gente, claro, mas que tem uma síntese terrível na presidência. Uma parte grande do meu desânimo vem daí. Penso em você na ditadura, jovem em tempos de AI-5. Você narrando o fim do sonho para, de alguma forma, iluminar mais uma noite.

É urgente lutar em muitas frentes, mas também nessa frente miúda que nos sustenta, que é a de dar algum sentido ao dia que amanhece. É necessário organizar a raiva, a mágoa, a angústia, a dor, a tristeza, o luto, o desânimo. A alegria também, claro. Sentir o gosto de mofo e, ainda assim, imaginar: “será possível plantar morangos aqui?”. Preciso lê-lo mais vezes. 

Na sua escrita, a honestidade não destrói o mistério, ancora-se nele. Com o relato da superfície, você avança sob a penumbra: as pernas cruzadas, os cigarros, as meias, os relógios, o ano novo fora de época. Gosto dos símbolos, dos sentidos ocultos, da tensão criada pela mera sucessão de gestos banais. Penso que “traduzir” tudo que você percorre, como quem passa uma câmera muito próxima ao rosto dos personagens (e dos leitores, eis a magia), não é a minha missão. Não quero dar o gabarito, contar o segredo. Qual seria, então, a minha função nesse encontro com especialistas em sonhos, símbolos e inconscientes? 

Acho que vou chegar lá e dizer que, com você, percebo que escrever é como passar a mão devagarinho no braço de alguém para ver os pelos se arrepiarem. No próprio braço. É uma estratégia para se aproximar do real pelo avesso e tocar o avesso pelo real. É um jeito de dizer sem explicar. Uma chance de imaginar. Escrever para poder erguer uma árvore ou dois mundos. Posso dizer para quem estiver lá: escreva. Ou fotografe. E depois me conte. Fique atento às epifanias, as miúdas. Mas eu não vou dizer nada disso, porque não tem fórmula. Direi, no máximo: dê ou receba aulas de direção, adote um gato ou dois, faça uma boa tapioca com queijo e leite de coco, converse com um desconhecido, com alguém que você ama, deite em uma divã. Acho que isso eles já fazem. 

Preciso terminar esta carta, a primeira. Lembro do seu sol em virgem, com ascendente em libra, a lua em capricórnio. Meu sol em escorpião, o ascendente em aquário e a lua em peixes. Você, cheio de terra, eu, mergulhada em mim. Não acredito tanto assim em astrologia, mas de vez em quando tiro uma carta. Pingo umas gotinhas de óleo de alecrim ou lavanda no pulso. Acendo uma vela, como acabo de fazer. Vai que. 

Vou colocar Strawberry Fields para tocar enquanto tomo banho. Nada é real, mas estamos indo. Forever

No mais, #forabolsonaro – com hashtag, porque é o jeito. 

Com amor, 

Iana

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.