Bemdito

Carta a um arrependido

As feridas de 2018 continuam abertas, e negar a reeleição em 2022 é apenas o começo
POR Wanderley Neves
Death in the Sickroom (Edvard Munch)

As feridas de 2018 continuam abertas, e negar a reeleição em 2022 é apenas o começo

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

Confesso que não sou uma pessoa boa de correspondência. Após minha última coluna, recebi um e-mail de uma pessoa que diz ter-se arrependido de ter votado no atual presidente da República no segundo turno em 2018. Segue o que enviei em resposta.

Olá,

Esta não é bem uma resposta ao seu e-mail. Diria que é uma tentativa de condensar os pensamentos, os sentimentos que me atravessaram por dias após lê-lo. Portanto, de antemão peço que perdoe se não me prendo a comentar suas sugestões, que realmente considero pertinentes; egoísta, talvez, aqui escrevo para mim e espero não despertar maus sentimentos. Foi por isso que resolvi compartilhar com outras pessoas.

Sua mensagem fez-me recordar que, na noite do primeiro turno da eleição de 2018, um primo que já não mora no Ceará enviou ao grupo da família um mapa do Brasil sem o Nordeste; a legenda proferia alguma auto-ofensa xenófoba da qual não me recordo. Profissional da saúde, hoje ele diz que nunca mais repete aquele voto. Só 2022 dirá qual é a força dessa convicção.

O que eu quero de alguém que votou no atual presidente em 2018, além de não repetir o erro? Eu não sei. Fico dividido entre a convicção de que sem muitos dos 57 milhões de equivocados não se ganha uma eleição e a satisfação da malhação pública de quem nos trouxe até aqui. Minha formação cristã (cristã do Cristo, não da adoração ególatra por aí apregoada) impõe a culpa pela última, mas a primeira ainda é difícil de praticar.

Com a hecatombe da pandemia de Covid-19, muitos eleitores descobriram que a morte é o mote do mito. Mas para nós, LGBT, o discurso do atual presidente sempre foi uma ameaça de morte. Ainda em 2011, ele afirmou: “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim, ele vai ter morrido mesmo”.

Ameaça que compartilhamos com muitos indígenas, mulheres, vítimas de violência policial, ambientalistas, reiteradamente agredidos do alto da tribuna da Câmara dos Deputados. E isso é difícil de perdoar, que uma pessoa querida vote em alguém que prega (aberta ou veladamente) a sua aniquilação. Só quem sente a violência gratuita do preconceito entende o calafrio na espinha que aquelas palavras causam.

Se desse sentimento nasce o revanchismo contra quem elegeu esse senhor, eu entendo completamente. Isso é o mais útil para evitar que ele seja reeleito ano que vem? Acredito que não. Só que não é um caminho fácil. Após a morte do ator Paulo Gustavo, minha vontade era de varar a madrugada gritando “GENOCIDA” pela janela.

Mas não, eu não diria que o Brasil é um regime hiperpresidencialista, o que permitiria a sucessão de abusos autoritários. Quem votou achando que o presidente e seus ministros não poderiam executar o que prometeram é que desconhece o poder que a via infralegal concede à caneta de um gestor público aqui ou na Austrália.

Decretos, nomeações, portarias, instruções normativas, resoluções, pareceres, ofícios, protocolos etc. não possuem o glamour e não passam pelo escrutínio de uma lei, mas documentam as decisões e omissões diárias que são o mais puro ato de governar.

Não foi por lei que a Secretaria de Comunicação usou o orçamento de publicidade para fazer propaganda do “tratamento precoce” em vez de incentivar o uso de máscaras e o distanciamento social. Foi por instrução normativa que o antiministro do Meio Ambiente inviabilizou as fiscalizações ao exigir novas etapas burocráticas antes de uma multa ser aplicada. A antiministra dos Direitos Humanos não precisou protocolar nada no Congresso Nacional para infernizar a vida de uma menina de 10 anos, autorizada pela Justiça a interromper a gravidez consequência de estupro.

Mesmo nos Estados Unidos, onde os “pais fundadores” desenharam um modelo de governo cujo centro é o Congresso, os problemas cotidianos foram ficando tão complexos que naturalmente as responsabilidades do Executivo foram inchando. Entretanto, tanto lá quanto cá, e acredito que em qualquer lugar, todo sistema pressupõe a boa-fé e o bom senso do governante e depende, portanto, da sua autocontenção, seja ela própria ou provocada pela ação dos “freios e contrapesos”.

Quando se tem governantes cujo mote é o confronto com essas mesmas instituições, isso simplesmente não funciona. Ao contrário, como a gente já viu diversas vezes, é nessa situação que esse gênero de político fica mais à vontade. E a isso o Brasil somou a pusilanimidade e o adesismo de tantas autoridades que deveriam fazer o controle do Governo Federal e seus imitadores país afora. Com outra pessoa na Procuradoria Geral da República, talvez já tivéssemos outro presidente. Sim, ele foi indicado pelo “homem da casa de vidro”, mas teve o nome aprovado por 68 senadores.

O que a gente faz, então? Não dá legenda a eles. E, caso alguém dê legenda, a gente não vota neles. Por quê? Porque eles inevitavelmente irão forçar os limites do regime democrático sem temer retaliações como um político “comum”. Ou não foi isso que os legitimou como candidatos em primeiro lugar? Isso eu aprendi em Como as democracias morrem, livro que até parece que a nossa extrema-direita adotou como manual ao detalhar a degradação da democracia em outros lugares. Mas lá estão também as duas normas não-escritas que sustentam a democracia: tolerância mútua e autocontenção institucional.

E aí entra o que eu falei na coluna passada: o discurso da extrema-direita é calcado na negação dessas duas normas: o líder pode tudo e os outros devem ser eliminados. Na França, quando a extrema-direita chegou ao segundo turno, em 2002 e 2017, todos os partidos se uniram para formar uma “barragem republicana” contra a extrema-direita; não foi por puro mérito que Jacques Chirac teve 82% dos votos em 2002. No Brasil de 2018, sempre duvidei que um eleitor de Geraldo Alckmin estivesse disposto a defender a democracia contra a óbvia ameaça autoritária. E foi o que aconteceu.

Perdoa-se a ofensa, mas é impossível apagar da memória. Até lá, sigo sonhando com um Brasil cujo ministro da Cultura convida o secretário-geral da ONU para tocar atabaque.

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.