Bemdito

Coisas que não quero que sejam minhas

Um ensaio sobre tempo, memória e infância: recordações do meu pai trazidas do fundo da gaveta
POR Luan Brito
Foto: Karim Manjra

Um ensaio sobre tempo, memória e infância: recordações do meu pai trazidas do fundo da gaveta

Luan Brito
luanbritoda@gmail.com

Numa gaveta em minha casa há objetos que pertenceram ao meu pai. Objetos nunca manuseados fora da intimidade do guarda-roupa de uma mulher viúva. Objetos que eu, ainda na idade de ser erguido pelos sovacos para conseguir alcançá-los, sentia que minhas mãos há muito tempo os esperavam para brincar: um escovão de crina para sapatos, um pincel para barbear, um relógio de pulso. Àquela altura, quando minhas impressões do mundo prescindiam a linguagem e tudo o que eu conhecia estava ao alcance das mãos, os objetos que pertenceram ao meu pai representavam o que havia dele comigo e, se ao escrever este texto empregando o verbo passado digo que esses objetos já não pertencem mais ao meu pai, temo os relegar a fria condição de inventário. Não posso esquecer que estes objetos ainda pertencem a ele, como nunca, pois assim eles estão fincados na terra comum da memória de nossa casa: ainda ligados às mãos que não existem mais, ao toque da barba eternamente rente, ao pulso que já não lateja com o caminhar silencioso do sangue. Se escrevo assim, que eles pertenceram, de alguma forma me faço hoje o seu dono, e possuindo esse espólio, aceito que o prazer da recordação – e toda recordação tem um pouco de espera – será sempre menor do que a dor da ausência.

Numa gaveta em minha casa há objetos que pertencem ao meu pai. Durante grande parte da minha vida acreditei que deveria tomar emprestados esses objetos. Essa recordação não me traz prazer nenhum. Talvez eu pensasse que era minha a tarefa de cumprir a vida que a morte o havia negado. Usei por alguns dias o relógio, e rapidamente superei esse pensamento. Lembro de sentir que meu pulso de garoto era uma espécie de braço impostor, e ser visto assim, com a pulseira sacudindo como um bambolê, me enchia de vergonha. Compreendo agora que esse relógio marca distâncias maiores que o tempo e o deixo em paz com seus dois companheiros na gaveta de minha mãe. Aos 30 anos, sei que a vida se encarregou de diluir lentamente todas as convicções sobre eu possuir os objetos que pertencem ao meu pai. Deduzo pela experiência que os objetos que pertencem a mim são os meus livros. Creio que nada me pertence tanto. O primeiro romance que li por prazer foi Moby Dick. Ao terminá-lo — levei muitos meses —, já estava acostumado à rotina de ler me deslocando pela casa à procura de luz natural, tão imerso que a ideia de tatear nas paredes os interruptores de luz me parecia inconcebível. Depois vieram os latino-americanos, principalmente os argentinos. Um prazer fortuito, não existem grandes leitores na minha família. A vida, ao que parece, deseja que eu tenha plena originalidade em meus próprios erros.

Tenho medo de me tornar mais velho do que meu pai foi um dia. Receio que aos olhos afundados na minha cara enrugada, os objetos que pertencem ao meu pai se tornem meras coisas que pertencem a um garoto, e a minha relação com eles perca o seu tímido romantismo. Porém, é inevitável. Está escrito na minuciosa história do futuro, num dos volumes da Biblioteca de Babel que alguns chamam de Universo. Sei que os objetos sobreviverão a mim como sobreviveram a ele. Em segredo, na oclusão da gaveta, deslocam o tempo com sua vontade invisível para que isso aconteça. Não, ao contrário do que escreveu Borges em Aquele que no Sul velaram, não me comove saber que essa miúda proposição desaparecerá com a minha morte. Não desejo ser um homem catando as miçangas do colar rompido do tempo. Sei que quando eu fechar os olhos a memória sobre os objetos que pertencem ao meu pai vai desaparecer e, naquele exato instante, eles voltarão a ser objetos comuns numa gaveta qualquer — um escovão de crina para sapatos, um pincel para barbear, um relógio de pulso — Não mais do meu pai. Mas nem por um segundo meus.

Luan Brito de Azevedo é designer e mestrando em Estudos da Tradução. Assina uma newsletter semanal.

Luan Brito

Escritor, mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.