Não tinha teto nem tinha nada: o apagão habitacional no Brasil
O que fazer quando o governo federal não investe em habitação?
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Em meio ao show de horrores orçamentário promovido pelo governo federal, os programas habitacionais não saíram ilesos. Com um corte de mais de 98% do orçamento, será interrompida a construção de 200 mil unidades habitacionais destinadas à população pobre brasileira. De nada adiantou rebatizarem o programa habitacional, já que agora não há mais “Minha Casa”, não há “Minha Vida”, nem “Casa Verde”, muito menos “Amarela”.
Criado ainda no Governo Lula, o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) foi alvo de críticas desde o seu lançamento, em que pese seu grande apelo popular – afinal, quem não lembra que a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, passou a ser conhecida como a “mãe do MCMV” e, com isso, ganhou força na corrida presidencial? No entanto, o modelo adotado pelo programa era falho do ponto de vista da efetivação do direito à moradia adequada, especialmente para os mais pobres dentre os mais pobres, como demonstramos em pesquisa.
Mesmo assim, o programa se tornou a principal ação pública no campo habitacional no país, concentrando a maior parte dos recursos destinados ao setor e alimentando a indústria da construção civil. Agora, nem isso. Como ficou evidente, sequer a dimensão econômica do programa comove Bolsonaro e Guedes, já que esta canetada custará a extinção de 250 mil empregos diretos e 625 mil empregos indiretos.
Em meio a esse contexto, recebi Guilherme Boulos para uma aula no curso Mergulhando no Direito à Moradia, na última terça-feira, quando compartilhou como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) atua não apenas na reivindicação, mas também na implementação direta desse direito. Inevitavelmente, um participante perguntou no momento do debate: “O que você faria se fosse presidente?”
Mais do que à excelente resposta que se seguiu, precisamos prestar atenção à própria pergunta. Obviamente, ela foi lançada devido ao fato de Boulos ter concorrido à Presidência e à Prefeitura de São Paulo nas últimas eleições. Contudo, ela deveria ser feita a cada um de nós: o que gostaríamos de promover no campo habitacional caso estivéssemos à frente do governo federal? Precisamos estimular nossa imaginação e ousadia no tema da moradia para fugir à tentação de simplesmente responder dizendo que manteríamos o investimento no programa. Isso é o óbvio. Manteríamos o orçamento pelo menos para que não houvesse a interrupção dos empreendimentos já contratados e em fase de construção. E além disso? O que acreditamos que seja necessário hoje para enfrentar a questão da moradia? Superando a ideia limitada de déficit habitacional e do atendimento centrado na produção de novas unidades habitacionais, que outros processos, políticas, programas e projetos promoveríamos no âmbito federal?
A pergunta é importantíssima, não apenas pelo que declara, mas também pela sua incompletude. Nem só de governo federal vive a habitação.
A competência material de efetivação do direito à moradia adequada é comum entre União, estados e municípios no Brasil, de acordo com a Constituição Federal (art. 23). Infelizmente, desde 2009, estados e municípios se acomodaram diante do sucesso do MCMV e passaram a simplesmente investir esforços em fazer o programa “rodar” em seus territórios, abrindo mão de fomentar iniciativas próprias destinadas à promoção de moradia adequada. Esta postura não é mais sustentável diante do governo Bolsonaro. É política e socialmente irresponsável. E não se trata de os governos estaduais e municipais possuírem ou não recursos para isso, já que a questão jamais foi da existência de recursos, mas da priorização na sua utilização.
Estados devem, por exemplo, reativar e investir recursos nos fundos estaduais de habitação de interesse social, apoiando assim seus municípios. Como na década de 1990, quando o governo federal praticamente não investia no setor, os municípios precisam retomar o protagonismo nas iniciativas habitacionais, cujas possibilidades são inúmeras e não se restringem à produção de novas unidades. Ações municipais voltadas, por exemplo, à promoção de melhorias habitacionais e disponibilização de assessoria técnica são predominantemente uma questão de concertação de interesses de diferentes atores (população, universidades, empresários locais), mais do que necessariamente de investimentos vultosos. Há caminhos, e a pandemia escancarou o fato de que a moradia é questão de vida ou morte. Por isso, assim como na política de saúde, caso estados e municípios permaneçam inertes diante do descaso federal com a habitação, também serão responsáveis pelo aprofundamento da crise sanitária e social brasileira. A omissão é inaceitável.
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.