Bemdito

Espero tua anarquia #3: Expandir a jaula

Reflexões de Noam Chomsky sobre a necessidade de defender o Estado antes de liquidá-lo
POR Jáder Santana

Na última parte da série sobre a atualidade do pensamento anarquista, as reflexões de Noam Chomsky sobre a necessidade de defender o Estado antes de liquidá-lo

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Em seu histórico discurso na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, São Paulo, no último dia 10, o ex-presidente Lula citou Noam Chomsky. O filósofo e linguista foi mencionado em lista de agradecimentos que incluía o ex-presidente do governo da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero, o ex-presidente da Bolívia Evo Morales, a monja Coen, e os cantores Martinho da Vila e Chico Buarque. Lula se referiu a Chomsky como “um dos maiores intelectuais vivos, hoje, na humanidade”, reproduzindo opinião do New York Times sobre o filósofo. 

Na última segunda-feira, 15, Chomsky retribuiu o afago enviando a Lula carta assinada por ele e sua esposa, a tradutora brasileira Valeria Wasserman, na qual se diziam “encantados” com o reconhecimento, por parte do STF, de que os julgamentos que levaram à condenação do ex-presidente haviam sido uma “fraude total”. Concluem o texto afimando a “esperança real de um fim à tortura que o Brasil tem sofrido nos últimos anos.”

Não é a primeira vez que Lula cita Chomsky. Antes dessa, outras cartas já haviam sido enviadas pelo casal. Em abril de 2019, enviaram ao ex-presidente, em sua cela na sede da Polícia Federal em Curitiba, missiva que começava assim: “Raramente passa um dia sem que pensemos em você, na bruta repressão que você está enfrentando, e na forma como tudo isso foi orquestrado para levar o Brasil a tempos sombrios.” Em agosto do mesmo ano, em entrevista à revista Jacobin Brasil, afirmou que Lula era o “principal preso político do mundo” e que Moro, ao contrário do que afirmava a imprensa, era “tudo, menos um herói.”

Noam Chomsky conta que descobriu e se encantou pelo anarquismo nos primeiros anos de juventude. Costuma se referir à sua filosofia política como socialismo libertário, que rejeita severamente o controle centralizado estabelecido pelo socialismo clássico de Estado, realizado pelo marxismo leninista, e propõe o estabelecimento de modelos descentralizados de democracia direta, como municipalidades, assembleias, sindicatos e conselhos. Uma forma de pensar que se aproxima do anarcossindicalismo, do anarcocomunismo e da ecologia social. 

Para entender o pensamento de Chomsky, o primeiro passo é saber que ele, voluntariamente, se distancia do comunismo e critica seus modos de organização e funcionamento. O intelectual fala do comunismo como “monstruosidade” e “tirania”, diz que seu colapso não poderia ser “outra coisa senão uma ocasião para a alegria daqueles que valorizam a liberdade e a dignidade humana.” Porém, julga como falácia óbvia o discurso que ressalta o fracasso da economia planificada como justificativa para afirmar os méritos do capitalismo. “Se fizermos uma comparação racional, concluiremos, na realidade, que o modelo econômico comunista era um desastre e que o modelo ocidental é um fracasso ainda maior”, escreveu. 

Falar de capitalismo em Chomsky é falar de um sistema mercantilista empresarial coordenado por “incontáveis tiranias privadas” que exercem controle quase absoluto sobre a economia, os sistemas políticos e a vida social e cultural. Seria esse o retrato do capitalismo em nossos tempos, uma força política estabelecida pelo poder privado e que se dedica a uma espécie de programa de propaganda cujo objetivo final é fazer com que o público – nós, a sociedade – adote o ponto de vista da pirâmide de controle. Em outras palavras, falamos da batalha pela mente dos homens em uma guerra na qual lutamos contra a indústria do entretenimento, a mídia empresarial e diversas outras instituições mobilizadas em nome dessa ordem econômica e social. 

A democracia representativa, coexistindo lado a lado com esse mercantilismo capitalista, estaria contaminada por se limitar à esfera política, não se estendendo seriamente ao campo econômico. Em seu anarquismo, Chomsky defende que o controle democrático da vida produtiva e econômica de cada indivíduo é o cerne da libertação humana sincera. “Enquanto os indivíduos forem forçados a alugar a si mesmos no mercado, enquanto seu papel na produção for simplesmente o de instrumentos subservientes, haverá impressionantes elementos de coerção e de opressão”, afirmou em entrevista em 1976. 

Chomsky enxerga o socialismo libertário como herdeiro e tutor do pensamento humanista radical do iluminismo. Também é discípulo dos ideais liberais clássicos – os originais, antes de sua deturpação em ideologias que sustentam a ordem social emergente. “Pelos mesmos pressupostos que levaram o liberalismo clássico a se opor à intervenção do Estado na vida social, as relações sociais capitalistas também são intoleráveis”, escreveu, estimulando críticas ao controle burocrático e privado dos meios de produção. Seu julgamento se aplica no contexto de realização do que chama “terceira e última fase emancipatória da história”: a primeira, quando os escravos se tornam servos; a segunda, quando os servos são feitos assalariados; a terceira, quando, numa ato final de libertação, o proletariado é abolido e o controle da economia fica sob responsabilidade de associações livres e voluntárias de produtores.

Nesse processo gradativo em direção à definitiva emancipação histórica do proletariado, é preciso, argumenta Chomsky, defender a autoridade do Estado antes de liquidá-la. “Minha meta de curto prazo é defender, e até reforçar, elementos da autoridade do Estado que, embora sejam ilegítimos em seus fundamentos, são decisivamente necessários neste momento para impedir os esforços de ataques aos progressos que foram conseguidos em benefício da democracia e dos direitos humanos”, afirmou. No atual estágio do sistema capitalista, apenas o Estado consegue estabelecer reais entraves à consolidação das “utopias de senhores” das corporações. 

Equilibrado em seus argumentos, Chomsky se move na contramão do radicalismo imediatista de algumas correntes anárquicas e nos convida à parcimônia, reflexão que se torna ainda mais relevante no atual cenário de recrudescimento de correntes conservadoras que beiram o fascismo. É preciso pensamento estratégico. “Vivemos nesse mundo, e não em outro. Podemos querer outro mundo, mas estamos vivendo neste, e se queremos ser relevantes para os seres humanos, se queremos resolver seus problemas, e que eles nos ajudem a resolver os nossos, devemos aprender justos como prosseguir a um próximo estágio. Não há maneira de viver neste mundo sem compartilhar das instituições que o constituem”, afirmou. Até o momento da ruptura definitiva, nossa tarefa é a execução diária das pequenas insubordinações. 

Enquanto não há alternativas, o que nos cabe, como estágio de um processo maior, é agir dentro das normas do Estado. “Isso faz as pessoas compreenderem que é necessário estar juntas, identificar a opressão e enfrentá-la. Vencemos aqui hoje e podemos vencer amanhã em outras circunstâncias. Essas são as dinâmicas da luta social”, afirmou. Em sociedades contemporâneas nas quais há ameaças reais ao estado democrático, esses esforços articulados de desconstrução e aprendizado se fazem ainda mais necessários. No pensamento de Chomsky, o primeiro passo para a consolidação da utopia anarquista é reconhecer as barras de sua jaula e expandi-las até onde for possível. Quando as linhas estiverem no limite, quando a revolução de pensamentos e ideias for consumada no nível intelectual, será a hora da implosão.

Embora defenda essa manutenção temporária e estratégica da organização do Estado, Chomsky não dá as costas aos anarquistas clássicos em sua opinião sobre o corpo da autoridade – o que é, afinal, o núcleo argumentativo de todo o pensamento anarquista. A autoridade, para Chomsky, precisa se justificar. “Creio que o anarquismo só tem sentido ao buscar e identificar estruturas de autoridade, hierarquia e dominação em todos os aspectos da vida, e questioná-las; e a não ser que se justifiquem, estas estruturas são ilegítimas e devem ser desmanteladas, visando a extensão da liberdade humana”, escreveu. 

Em seu pensamento, o questionamento à autoridade não se resume à esfera do poder de Estado. Pelo contrário, as tiranias estatal e privada seriam limites extremos de uma estrutura autoritária que surge em domínios muito anteriores: “nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes, homens e mulher, os que estão vivos e as gerações futuras que serão forçadas a viver com o resultado daquilo que fazemos”. Toda e qualquer hierarquia tem o dever de se justificar. Caso essa estrutura não possa ser justificada, deve ser considerada ilegítima. Deve ser desmantelada. 

O pensamento anarquista de Chomsky se aproxima das reflexões de Bakunin quando afirma que o homem precisa ser livre das tutelas de instituições governamentais e clericais para desenvolver seu intelecto e tornar-se consciente das forças individuais e sociais da vida. A liberdade, longe de ser apenas um conceito abstrato e filosófico, refere-se à possibilidade concreta essencial de que todo ser humano possa desenvolver as capacidades e habilidades com as quais foi dotado por natureza – aqui, mais uma vez, a valorização da natureza original do homem, como em Bakunin e Thoreau -, convertendo-as em valor social. 

Seus argumentos também caminham ao encontro do anarcossindicalismo, vertente anarquista que coloca a organização sindical como elemento básico para a transformação da sociedade em direção a uma democracia autogerida pelos trabalhadores. Por essa reflexão, reconhece que o grande problema de nosso tempo é “libertar o homem da desgraça da exploração econômica e da escravização social e política” não por meio do poder do Estado, mas reconstruindo “a vida econômica das pessoas de baixo para cima”.

Na apresentação de suas reflexões sobre os modos de ampliação de nossas correntes antes do rompimento definitivo dessas barreiras, Chomsky direciona críticas específicas a alguns agentes e instituições sociais que, ao seu ver, não exploram – ou o fazem de forma equivocada – todo o potencial de suas vozes. Fala, por exemplo, da imprensa, que se submete à lógica da exploração empresarial e esquece o cerne ideológico e as origens históricas de sua atividade. 

“Ninguém conhece a história da classe operária, ninguém a estuda. Dê uma olhada nos meios de comunicação ao redor do mundo. Há sempre uma seção de negócios. Você já viu uma seção de trabalho? Eu não conheço nenhum jornal que tenha uma seção de trabalho. Mas todos eles têm uma seção de negócios. Existe uma imprensa empresária, mas existe uma imprensa operária”, questionou durante entrevista, insinuando que quando a imprensa abre suas páginas com tanta ênfase para o mundo empresarial, atua como espelho ordinário do poder. 

No ambiente acadêmico e intelectual, outro problema. Chomsky defende que tudo relativo à política e à sociedade “está na superfície”, mas apesar disso “o que os intelectuais fazem é justamente tornar essas questões inacessíveis, por várias razões, inclusive por razões de dominação e interesse pessoal.” Compara a ação dos acadêmicos ao estabelecimento dos mistérios pela Igreja medieval – em ambos os casos, são criados enigmas para impedir o entendimento das pessoas comuns e fazê-las permanecer em seu estado de subordinação. 

Muitas vezes involuntária, mas sempre danosa, essas técnicas de marginalização, intimidação e controle estabelecem barreiras. “Muitos jovens militantes sentem-se simplesmente intimidados pelo jargão incompreensível que vêm dos movimentos intelectuais da esquerda, impossível de entender e que faz com que as pessoas sintam que não podem fazer nada porque, a não ser que de algum modo entendam a última versão pós-moderna disso e daquilo, não podem sair às ruas e organizar as pessoas, pois não são suficientemente inteligentes”, afirmou em entrevista concedida a estudantes de história da Universidade de São Paulo (USP) em 1996. 

Com metáfora certeira, sobretudo quando inserida no contexto de reacionarismo latente da sociedade brasileira pós-redemocratização, Chomsky fala de um terror burguês que é nosso velho conhecido: as vitrines quebradas. Escreve que “a civilização e a justiça da ordem burguesa aparecem em todo seu sinistro esplendor onde quer que os escravos e os párias dessa ordem ousem rebelar-se contra seus senhores”. Quando isso acontece, essa civilização e essa justiça mostram-se como são, “selvageria sem máscara e vingança sem lei.” A seguir, conclui: “A burguesia do mundo inteiro, que assiste com complacência a essa matança em massa depois da luta, treme de horror ante a profanação do ladrilho e do tijolo.”

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.

Leia as outras partes da série
Espero tua anarquia #1: A culpa de Deus
Espero tua anarquia #2: Casa no campo, rocks rurais

Serviço

Notas sobre o anarquismo
Noam Chomsky
180 páginas
Editora Hedra, 2011
Preço: R$35,90

Quem manda no mundo?
Noam Chomsky
400 páginas
Editora Crítica, 2017
Preço: R$37,50

Mídia: Propaganda política e manipulação
Noam Chomsky
112 páginas
Editora WMF Martins Fontes, 2013
Preço: R$25,69

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.