Fora de quadro
Sobre tentativas de salvação do apagamento e o papel da memória nas conexões, relações e subjetividades
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
Não cheguei a conhecer minha avó paterna que, como eu, era dada aos pincéis e às palavras. Mas pude conviver com a avó materna, mulher simples, amorosa, de olhos redondos e pés sem cavas. Às vezes encontrava-a no alpendre de sua casa, na zona rural de Mombaça, quando ela tentava fazer a sesta após o almoço. Batia uma moleza e, antes do cochilo, seus olhos se perdiam no horizonte. “Vó, se a senhora pudesse viajar pra qualquer lugar do mundo, pra onde iria?” Por mais que eu insistisse, explicando que se tratava de uma viagem de “carro, avião, navio, com tudo pago”, a resposta era sempre a mesma: “Não quero ir a lugar algum”. Aquilo me perturbava à época. Anos mais tarde é que entendi que seu mapa-múndi acontecia inteiramente naquele sertão e para além dali não lhe interessava se havia outras terras.
Quando ela faleceu de forma repentina, no mesmo local onde nasceu, a verdade é que me dei conta de que pouco sabia a respeito de minha avó. Talvez por isso o trabalho de conclusão de curso de Faruk, intitulado Eu me lembro, por nós dois, tanto me comoveu. Ele quis registrar relatos sobre a avó, dona Rocidélia, que vive em estágio avançado de Alzheimer. Faruk apresenta, em ambiente virtual, um documentário, uma reportagem e uma série de retratos da família sobre os quais intervém por meio da palavra. Ao acessar o site, um pequeno texto menciona o avô, Raimundo, e a avó, Maria Rocidélia, há alguns anos diagnosticada com a doença e a quem todo o material reunido na pesquisa é dedicado.
Na exposição virtual, há duas possibilidades para quem navega: álbum de memórias e memória falada. No álbum de memórias, são expostas séries de fotografias do acervo de dona Rocidélia, nas quais Faruk inseriu textos manuscritos, além de borrar digitalmente alguns rostos. Os textos são transcrições de entrevistas realizadas com o pai, os tios e as tias, acerca da avó. Nessas imagens, há certo vínculo com a estética dos quadrinhos, uma vez que o aspecto gráfico é ressaltado na edição, no uso da palavra e na nódoa do rosto, cujos traços apagados deixam de se referir a alguém com identidade estabelecida e tornam-se apenas manchas, vultos sem nome.
Dona Rocidélia surge em várias ocasiões e ângulos diferentes: no balcão da mercearia, no alpendre em reunião com a família, ao lado da turma de adolescentes da escola em que trabalhou, de mãos dadas com o marido em oração durante a novena. A seção memória falada consiste no documentário com as entrevistas. Multiplicam-se as narrativas dos nove filhos e filhas sempre a seu respeito, descrevendo hábitos, características afetivas e comportamentais, antes e depois do diagnóstico da doença. Os discursos sobre dona Rocidélia a relacionam ao marido, aos diversos papéis sociais que desempenhou e à atuação constante no trabalho com a costura, na administração da casa, do comércio, na direção da escola e no cuidado quanto à educação da prole.
Dona Rocidélia é personagem, tema e inspiração da pesquisa. O documentário e a série de fotografias estão constantemente a orbitá-la, no entanto, é como se à ela de fato não houvesse entrada. Ao espectador, ela se mantém distante, translúcida, inacessível como muitas de suas lembranças lhe devem ser. Por isso, um dos planos mais bonitos do vídeo é o primeiro, aquele em que se ouve o barulho do motor da máquina de costura, enquanto a mão, talvez a de Faruk, segura o retrato da avó, momento raro em que ela aparece sozinha. Outro plano especial é o último, no qual ela surge de perfil, como se estivesse alheia à condição de filmada. Ao fundo, tantos retratos fixados na parede denunciam a família numerosa, mas dona Rocidélia não olha para nenhum deles. Seu olhar, atônito por detrás dos óculos, dirige-se ao fora de quadro, não se sabe para onde.
O fora de quadro muitas vezes tem valor singular na construção da narrativa fílmica. Aquilo que não se vê, que está ausente do enquadramento, pode ser tão importante quanto aquilo que é mostrado. A máquina de costura não precisa aparecer em imagem, assim como não é necessário que se mostre o que dona Rocidélia vê quando aparece de perfil. O fora de quadro nos dois planos mencionados constrói uma poética que lida intimamente com a atual condição da personagem: o não dito, o não visto, o lapso. Para o espectador, basta o ruído das engrenagens da máquina como índice para evocar todo um ofício, a prática rigorosa, fina e paciente da costureira, cheia de etapas e pormenores. Basta perceber a presença de dona Rocidélia, cujo olhar vagueia perscrutando a superfície das coisas, com um misto de curiosidade e espanto similar ao da criança.
Faruk, que conviveu com ela durante a infância e adolescência, diz o quanto foi estranho acompanhar o avanço da doença, o fato de a avó deixar de reconhecer familiares próximos até não conseguir construir pequenas frases. Diante da impossibilidade de chegar à fonte primordial, ou seja, de ouvir a própria avó narrar a si mesma, Faruk aposta nas fotografias de família e na narrativa que vem dos filhos. Ele os filma em planos fechados, com carinho – uma aposta que remete ao cinema de Eduardo Coutinho, cuja força se dá no encontro, na escuta do outro e na abertura recíproca por meio do conversar.
Segundo Humberto Maturana (2001), conversar é a forma de operar no fluxo entrelaçado de coordenações consensuais de linguajar e emocionar. Para o autor, linguajar é um fenômeno biológico que não se restringe somente à palavra em si, enquanto o emocionar é tido como o fluir de um estado de emoções a outro. Então se conversa em um plano maior, não apenas porque se troca palavras ditas, enunciações, mas porque se produz junto um ambiente no qual se convive. Assim, a conversa acontece também com palavras que são mal pronunciadas, ruídos do ambiente, ações interrompidas, silêncios no meio das frases, olhares vagos.
É a memória que parece criar um elo entre os muitos que temos sido durante os anos e estabelecer alguma unidade, ainda que frágil, à qual damos o nome de “eu”. Os relatos de si, as autonarrativas conectam diferentes fases vividas por nós na sucessão do tempo e procuram dar ordem e sentido a situações aleatórias. Quando as lembranças vão se tornando opacas e esvaem-se pelos dedos, não somos mais capazes de fazer muitas dessas conexões. Qualquer noção de identidade como formação sólida e precisa desaparece por completo. Que subjetividades experimentamos quando parte significativa de nossa memória é obliterada? É possível encontrar modos quem sabe prazerosos de seguir no eterno presente, na pura duração, sem costurar nexos com o passado? Sobre as lembranças antigas, por que algumas raras parecem se manter e através de que mecanismos permanecem acessíveis?
O gesto de Faruk, ao tecer um panorama de relatos sobre e para a avó, movido pelo desejo de registrar sua história, é quase no sentido de salvar-lhe do apagamento, já que a própria avó não pode fazê-lo. Quando ele escuta os relatos, revisita os retratos nos álbuns de família e os reúne para a criação da exposição virtual, algumas memórias da avó são atualizadas, se não para ela, ao menos para ele e para nós.
Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.