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Houve uma vez 52 paixões

Lá se vão dois anos com Nova Jerusalém vivendo a agonia de ser a maior cidade-teatro fantasma do mundo
POR Magela Lima
Foto: Divulgação

Lá se vão dois anos com Nova Jerusalém vivendo a agonia de ser a maior cidade-teatro fantasma do mundo

Magela Lima
lima.magela@gmail.com

Na casa de Seu Epaminondas e Dona Sebastiana, fazia-se de um tudo para colorir as horas e entreter os miúdos. Ali, nunca faltou criança pequena nem brincadeira. Tiveram nove filhos. Não foram poucas as vezes em que, já pelas bandas da Fazenda Nova, em Brejo da Madre de Deus, a família se divertiu com teatro, eles mesmos fazendo e eles mesmos se aplaudindo. Dona Sebastiana, dizem, era uma joia nessas coisas de drama, tirava cena assim do nada. Tanto que, quando o marido, depois de ter lido uma reportagem sobre a fama das encenações da vida e morte de Cristo de Oberammergau, na Alemanha, lançou a ideia de fazer o mesmo no agreste pernambucano, em dois tempos, ela pôs o espetáculo de pé. Logo, o Drama do Calvário ia se fazer tradição na região. Na Semana Santa de 1951, há 70 anos, quando tudo começou, praticamente todos os Mendonça tiveram que dar conta de algum personagem. Seu Epaminondas, inclusive, mesmo usando óculos, calças compridas e botas, fez as vezes de Caifás. Entre os filhos, Luiz foi Jesus. Nair foi a Virgem Maria. Geni, Verônica. Paulo, Pilatos. Diva, a caçula, tinha dois papéis. Com 11 anos, apenas, fazia a donzela de Jerusalém e o demônio.

Em 1968, um novo e definitivo capítulo vinha se somar a essa história. Então, era inaugurada a cidade-teatro de Nova Jerusalém, considerada o maior palco ao ar livre do mundo, com seus 100 mil metros quadrados, onde a agora “Paixão de Cristo” passava a ser apresentada anualmente, aproximando diferentes gerações e talentos do teatro de Pernambuco e do Brasil. Quando adquire esse formato que chega aos dias de hoje, a empreitada já não era apenas uma iniciativa dos Mendonça. Nova Jerusalém tem dois sobrenomes. O jornalista gaúcho Plínio Pacheco, com quem Diva viria a se casar, é o grande responsável por reelaborar a proposta original. Ano após ano, a brincadeira ingênua de Seu Epaminondas e Dona Sebastiana foi se fazendo mais arrojada e sofisticada, sem, no entanto, perder o vínculo com as comunidades locais, que, desde sempre e até hoje, colaboram com o espetáculo de forma muito intensa, entrando ou não em cena. Plínio e Diva Mendonça Pacheco fundam a Sociedade Teatral de Fazenda Nova, tocada agora pelos filhos, coração criativo e administrativo do projeto, uma das âncoras do turismo cultural de Pernambuco, tal o carnaval de Recife-Olinda e o São João de Caruaru.

Por 52 anos, a Paixão de Cristo, de Nova Jerusalém, brincou com o tempo, atualizando-se enquanto se mantinha, inovando enquanto se repetia. Parou agora, quando o mundo inteiro parou. Em 2020 e 2021, pela primeira vez, a cidade-teatro ficou vazia. Quase vazia. Ficou sem apresentações e, consequentemente, sem público, mas, felizmente, cheia de histórias e memórias. Nova Jerusalém é, em suas origens, a ousadia de Seu Epaminondas e a invenção de Dona Sebastiana; é, na prática, o sonho talhado em pedra de Plínio e a dedicação incansável de Diva; mas também é a arte e o encontro de uma infinidade de nomes que ajudaram a consolidar boa parte das ideias do que hoje a gente tem por teatro brasileiro. Basta dizer que um dos principais entusiastas da construção de Nova Jerusalém foi Paschoal Carlos Magno, fundador do Teatro do Estudante do Brasil, de 1938. A apresentação do espetáculo do ano de 1962 foi a última feita gratuitamente nas ruas de Fazenda Nova. Naquele mesmo ano, Paschoal, embaixador de carreira, então secretário do Ministério da Educação e Cultura, consegue financiamento, com recursos do antigo Conselho Nacional de Cultura, para a aquisição do terreno onde a futura cidade-teatro seria construída.

Carioca, Paschoal Carlos Magno nunca faltou ao Nordeste. É dele, ressalte-se, o termo “teatro do Nordeste”, usado para abarcar a produção da geração dos anos 1940 interessada nas manifestações tradicionais populares da região. Particularmente, Paschoal Carlos Magno nunca faltou a Pernambuco. Em 1946, ele patrocina pessoalmente o primeiro Concurso de Peças do Teatro do Estudante de Pernambuco. Daí, o prêmio principal, que selecionou Uma mulher vestida de Sol, de Ariano Suassuna, fazer referência à memória do imigrante italiano Nicolau Carlos Magno, pai de Paschoal. Em 1952, ele escolhe Hermilo Borba Filho para inaugurar com o texto de João sem terra o Teatro Duse, no Rio de Janeiro, dentro da programação do primeiro Festival do Autor Novo. Já em 1957, é uma das vozes mais entusiasmadas com a passagem do Auto da Compadecida, peça também de Ariano Suassuna em montagem do Teatro Adolescente do Recife, na primeira edição do Festival de Amadores Nacionais, organizado por Dulcina de Moraes, também no Rio de Janeiro. Naquele mesmo 1957, ele organiza e dirige o I Festival Nacional de Teatro de Estudantes, em Recife. Diante disso, seria praticamente impossível a história de Paschoal Carlos Magno não cruzar a história de Nova Jerusalém.

Até mesmo porque, graças à atuação de Luiz Mendonça, o filho Jesus de Seu Epaminondas e Dona Sebastiana, muitos dos artistas ligados ao Teatro do Estudante de Pernambuco e ao Teatro Adolescente do Recife se tornaram figuras bastante conhecidas em Brejo da Madre de Deus. Radicado na capital, onde se fixou para concluir os estudos, quase na mesma época em que a família começa a apresentar o Drama do Calvário, Luiz fez carreira no teatro e acabou sendo a conexão entre a tradição popular e a cena profissional. Clênio Wanderley, por exemplo, com quem Luiz Mendonça havia iniciado suas primeiras experiências nos palcos do Recife, integrando o Teatro do Estudante Secundário, já era egresso do Teatro do Estudante de Pernambuco. Clênio Wanderley conhece a família Mendonça em 1953 e, naquele primeiro encontro, atua e passa a fazer uma espécie de coordenação artística no espetáculo, do qual participou até 1976, quando veio a falecer. Por muitos e muitos anos, diga-se, foi dele o papel de Judas Iscariotes, enquanto Luiz Mendonça seguia como Jesus Cristo. Quando se encontram, enfim, para a celebrada primeira encenação do Auto da Compadecida, em 1956, Luiz, atuando, e Clênio, dirigindo e atuando, já somavam, pois, vários anos de parceria na Fazenda Nova.

Luiz Mendonça, que faria 90 anos agora, é um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro do século XX. Em Brejo da Madre de Deus, no Recife e no Rio de Janeiro, para onde se muda (ou exila) quando o golpe de 1964 põe fim aos trabalhos do Movimento de Cultura de Popular, ele foi sempre muito afeito às tradições e muito comprometido com o novo. Mesmo encabeçando com a mãe os primeiros movimentos do Drama do Calvário, ele se adaptou bem às mudanças propostas pelo cunhado Plínio Pacheco. Em 1961, a destacar, o texto original de Oziris Caldas, adaptado por Mendonça, é substituído por uma nova dramaturgia, Jesus, mártir do Calvário, de autoria de José Pimentel, ator, seu colega de elenco no Teatro Adolescente do Recife. Luiz, no entanto, só se despede da Paixão de Cristo no ano da inauguração da cidade-teatro. Pimentel, por sua vez, segue envolvido com as encenações da Fazenda Nova até 1996, por 27 anos na função de diretor da peça, sendo que, de 1978 em diante, também interpretando Jesus. Foi Pimentel quem, diante do desafio de expandir o público do espetáculo, agora com bilheteria, introduziu mudanças mais significativas na encenação, como a adoção de áudios previamente gravados e as participações de celebridades e artistas de outros estados. Corria o ano de 1972, quando o cantor Erasmo Carlos, o apresentador Carlos Imperial, o estilista Denner e a atriz Maritza Cavalcanti participaram do bacanal de Herodes. Polêmica? José Pimentel, no entanto, sempre defendeu que os papéis principais fossem cota exclusiva dos pernambucanos.

A partir dos anos 1990, porém, a Paixão de Cristo passa a apostar mais e mais nos artistas convidados. Em 1992, ainda com Pimentel à frente da encenação, estavam no elenco o ator Angelo Antônio, como um dos apóstolos, e Letícia Sabatella, vivendo Verônica. Em 1997, quando o espetáculo passa a ser dirigido em parceria por Carlos Reis, que, entre 1969 e 1977, também fez o papel principal, e Lúcio Lombardi, Nova Jerusalém recebe seu primeiro Jesus famoso, com Fábio Assunção substituindo José Pimentel. Nova polêmica? Depois, vieram nomes como Thiago Lacerda e Vladimir Brichta, sempre na crença de que artistas com projeção na televisão garantiriam um incremento maior de público. O pernambucano Renato Góes e Juliano Cazarré foram os últimos intérpretes. O fato é que a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém muda para ser exatamente o que sempre foi. O que se tem ali é um tipo muito particular de teatro, associado com frequência às celebrações religiosas, mas também presente nos circos, cuja lógica de funcionamento é justamente a permanência. Mesmo que a dramaturgia, o elenco, o figurino, a trilha sonora e outros tantos recursos mudem, a história da vida e morte de Cristo é uma só e, embora amplamente conhecida, segue encantando e surpreendendo. Eis a beleza da tradição.

Em tempo: para 2022, as apresentações já têm data marcada. Se tudo der certo, acontecem de 9 a 16 de abril.

Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.