Lula, Fachin e a caneta mágica do juiz
No vai-e-vem da relação entre Judiciário e Lava Jato, os processos que tornaram Lula inelegível voltam à estaca zero
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin de anular todas as condenações dos processos de Lula na Lava Jato foi tão poderosa que desviou o foco quase absoluto da imprensa do colapso da saúde pública para o redesenho da dinâmica eleitoral. Uma decisão inesperada e com um timing curioso – ontem a imprensa noticiou a informação de que, a tirar pelas pesquisas de intenção de voto, Lula ainda é um competidor forte, que mobiliza o imaginário popular do Brasil. Tão logo a decisão do ministro foi noticiada, as especulações começaram, com conclusões nem sempre sustentáveis do ponto de vista político.
Fachin julgou o habeas corpus impetrado em 3 de novembro do ano passado pela defesa de Lula em contra decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Os argumentos da defesa que foram acatados pelo ministro do STF não são novos – há anos a defesa tenta emplacar a tese de que o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba é incompetente para julgar as ações em que é réu o ex-presidente. O argumento foi rejeitado durante anos, em diferentes instâncias, e já sabemos que o insucesso processual de Lula impediu sua participação no pleito de 2018 e praticamente chancelou a vitória de Jair Bolsonaro. Chama atenção o detalhe de que o próprio Fachin havia decidido remeter o habeas corpus para análise do plenário, dando a entender que não acataria as teses da defesa, mas voltou atrás após Lula interpor embargos declaratórios com efeitos infringentes (para os leigos em direito, um recurso que cabe para impugnar obscuridade, omissão ou contradição da decisão).
Em outras palavras, Fachin resolveu acatar os embargos da defesa e reavaliar sua própria decisão, decidindo julgar de pronto o habeas corpus em favor de Lula para considerar nulos TODOS os atos decisórios praticados nos processos da Lava Jato em que Lula é réu. Na prática, a decisão impacta até mesmo o recebimento das denúncias pela primeira instância – de modo que, com uma canetada, Lula deixou de ser réu do ponto de vista estritamente formal. O que causou choque, além da falta de indicativos de que decidiria a questão como decidiu, foi a peculiaridade de que a iniciativa partiu de um relator sabidamente simpático à Lava Jato, que tem sofrido sucessivas derrotas na 2ª Turma do STF.
O fato de que o humor do tribunal esteja indisposto com a Lava Jato e tendente a reconhecer a suspeição do Moro foi logo indicado por muitos analistas como a razão para a manobra surpreendente de Fachin. O ministro teria, segundo alguns, agido para “salvar” os processos oriundos da operação e o próprio Moro contra a desmoralização provocada pelo reconhecimento provável de sua suspeição. A devassa provocada pela Vaza Jato, que expôs a colaboração pouco republicana entre Moro e acusação, gerou impactos sensíveis sobre a credibilidade do ex-juiz, maculando o manto de imparcialidade e lisura que ele sempre gostou de ostentar.
Há quem diga que o cavalo de pau de Fachin preserva a chance de as condenações de Lula serem salvas pelo novo juízo que irá atuar no caso – os atos decisórios estão nulos, mas o juiz federal competente que venha a receber novamente as denúncias poderia aproveitar todos os atos instrutórios do processo, isto é, as provas produzidas sob a condução de Moro. A tese só faz sentido se de fato o Supremo Tribunal Federal entender que a questão da suspeição de Moro está prejudicada e não deve mais ser analisada. Até o momento, não há informações seguras de que os ministros cansados dos excessos do ex-juiz cederão a essa jogada de Fachin. Para a defesa de Lula, permanece o interesse processual de ver Moro declarado suspeito, pois só assim os processos serão anulados em sua integralidade, e não apenas quanto às decisões.
No momento, é difícil fazer previsões seguras sobre o que acontecerá nos próximos dias, mas o episódio nos permite mais uma vez refletir sobre o casuísmo e a manipulação política do timing dos processos em benefício de operações anticorrupção. Gostando-se ou não do resultado, a decisão de Fachin ajuda a macular a autoridade de um poder republicano que pode interferir no processo eleitoral e manter alguém encarcerado por 580 dias para depois reconhecer, como quem apenas presta atenção em uma formalidade miúda, que, em quatro processos distintos, três instâncias de justiça erraram quanto ao aspecto estrutural mais básico de um processo: quem deve julgar o acusado?
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.