Bemdito

Missa do Galo e os exercícios de concisão que nos foram roubados

As nuances entre o conto de Machado de Assis e o filme de Nelson Pereira dos Santos, quase um século depois
POR Cauby Monteiro
Foto: Reprodução do filme "A Missa do Galo"

A “Missa do Galo”, de 1894, se desenvolve em poucas páginas que transcorrem na cabeça de um adolescente facilmente impressionável – como geralmente o são –, imperceptível às ações, desejos e tramoias dos outros personagens à sua volta. Há uma consciência de início que admite essa falta de percepção e deseja, ao relatar a pequena história passada na véspera de Natal – ou ainda menos que a véspera, a uma hora antes da meia-noite –, colocá-la no papel ajude a compreender os fatos, com a devida assistência do leitor. Escrever para pensar, como é devido.

Mesmo tendo consciência, ou tendo conhecimento dos fatos apenas, do que significava seu primo ir ao teatro e do porquê ele não poderia acompanhá-lo, tudo é exposto rapidamente: o julgamento moral de Conceição, a vida que ele vive na casa do primo – que, na verdade, é a casa da sogra do primo, mais observadora do que parece – e a espera que, rapidamente, por trabalho de uma visagem noturna, transforma-se em fascinação.

Na idade de ser completamente envolvido pelas histórias que lê nos romances, ele não diferencia a “prima” de um personagem dos romances. O relato simples e corrido rapidamente transforma-se numa descrição detalhada de um jovem, que, quando escreve, já não é mais jovem, de movimentos, de palavras ditas à meia voz no calar da noite, para não acordar a senhora que dorme (“Mais baixo, mais baixo”), a inocência erótica que se enrola na trama e no tempo, como uma serpente que demora para devorar sua presa.

Tudo com calma, com destreza, sabendo que, no momento certo, os ossos quebram, e uma verdade oculta se revela.

Como sempre, a santa, veja só, não é santa, é uma mulher, e essa é a descoberta, especialmente cruel, que uma frase corriqueira descortina: “Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido”.

O filme

A “Missa do Galo”, de 1982, sabe da sua posição de inferioridade em relação à obra de 90 anos antes e não tenta encontrar subterfúgios para driblá-la. Não temos o exercício preciso de encorpar a palavra que era comum na época, particularmente das obras influenciadas pelo “jansenista francês”. Nada de se esconder, a verborragia vem dos personagens, não das vozes ocultas. É tudo cristalino, os olhares, as intenções, os humores.

Uma frase perdida, como “…as escravas riam à socapa”, torna-se toda uma esquete ridícula e deixa de ser uma pincelada para se tornar uma faca que corta a hipocrisia burguesa escravocrata das duas épocas. A já referida frase final não é apenas no final, com o escrevente juramentado sentado à mesa e recebendo seu título como se fosse uma honraria de cavaleiro. Vemos bem mais do que “a careta” da sogra, com ela expressando de maneira forte seu descontentamento com o “teatro” do genro.

A conversa, óbvio, perde a sugestão e a delicadeza que a palavra bem construída consegue dar, mas ganha no atrelamento dos corpos à imagem. Não estamos numa meia-luz de velas imaginárias da literatura, mas numa luz forte de lâmpadas halógenas de cinema que nos deixam ver absolutamente tudo. E a Conceição não é mais uma ideia no papel. É Isabel Ribeiro, eclipsando tudo e todos, principalmente o adolescente de Mangaratiba, que perde seu papel de destaque e perde também o controle, mesmo que ilusório, da história que conta.

Sem entrar nas bobagens de olhares e detentores destes (ah, os “gazes”), a Missa do Galo de 1982 é o interlocutor que o narrador da Missa do Galo de 1894 buscava. Um século mais tarde e alguém cochicha, em 25 minutos, no ouvido deste narrador: “Eu te entendi, seu safado, seu bruxo, agora me deixa trabalhar”.

Duas obras distantes no tempo, cada uma a seu modo um exercício de concisão. Mas de toda forma, é o mesmo país, a mesma falcatrua, a mesma hipocrisia. Mas é a nossa falcatrua, a nossa hipocrisia. Uma parte dela apodrecendo no Largo Senador Raul Cardoso (quem?), 207. Quo vadis, cinema brasileiro (o quê?)? 

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.