Neofascismo como protopolítica

Como o neofascismo sequestrou corações e mentes dos brasileiros

Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com

Talvez seja possível acreditar na ingênua ideia de que o falecido Senador Major Olímpio tenha sido só mais um enganado pelo discurso hipócrita do genocida que está no poder. Mesmo tendo posteriormente rompido as relações políticas com ele, Major Olímpio foi mais um entre milhões de brasileiros que tiveram seus corações e mentes sequestrados por uma ideologia sobre a qual não restam dúvidas quanto ao seu caráter neofascista.

Em Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascista (2020), Armando Boito Jr. estabelece que os fascismos italiano e alemão do século XX são um gênero do qual o bolsonarismo é espécie. Entre muitos paralelos análogos entre o movimento fascista original e o contemporâneo brasileiro, há coincidências nos processos de ascensão ao governo, como: ´”crise política com polarização do conflito de classes”; “crise dos partidos burgueses tradicionais”, como o PSDB e o MDB; “derrotas políticas do campo operário”, como a surgida desde o impeachment de Dilma Rousseff, com as consequentes reformas trabalhista no Governo Temer, além do impedimento da candidatura de Lula; “estabelecimento de uma nova hegemonia burguesa”, com ascensão de Michel Temer depois do impeachment; e a cooptação da pequena burguesia e da massa de trabalhadores precarizados como classes-apoio ao “governo do capital internacional”.

Mas um dos elementos-chave para o surgimento e consolidação do neofascismo brasileiro é, sem dúvidas, o ideológico. Mas como isto se deu, concretamente? De que modo se pode ser capturado pela ideologia neofascista, no Brasil? Muitas hipóteses são possíveis. Aqui, posso falar até mesmo de um método.

O método foi o de se reafirmar do jeito mais baixo e violento possível os valores que ocupam um senso comum entre os brasileiros há séculos: nacionalismo, militarismo, enaltecimento dos valores familiares cristãos e um ódio disperso contra uma noção vaga e seletiva contra a “corrupção” e ao “crime”. Estas pessoas são nossos parentes, pais, irmãos, tios e tias, primos e primas, amigos e amigas que, de fato, não são genocidas. São pessoas comuns, que se emocionam com as mortes alheias. Mas que se afogaram dentro da bolha dos grupos de WhatsApp, com memes e fake news forjados especialmente para eles e elas, disparados há pelos menos sete anos. Isto sem contar os 20 anos de olavismo cultural online, e, claro, do antipetismo diário das famílias que monopolizam a mídia brasileira.

O mais curioso é pensar que boa parte dessas pessoas talvez até tenha votado em Lula em 2002, e talvez votaram nele, de novo, em 2006. Mas foram fortes demais as forças das consequências da crise do capital internacional em 2008; da hoje comprovada manipulação nas redes sociais, com Steve Bannon, Cambridge Analytica, etc. por detrás; das consequências da consolidação do neopentecostalismo importado dos EUA para o Brasil, o qual se proliferou sem maiores resistências durante os anos 90, mesmo com suspeitas de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e charlatanismo; além das consequências de inúmeras teorias da conspiração de direita.

Uma possível explicação para o apego a essas ideias e valores de fundo ao neofascismo bolsonarista talvez possa ser encontrado no seu Sociedade do espetáculo (1967), em que Guy Debord pôde nos dar um conceito de fascismo que ainda persiste. Considerando-o como um “arcaísmo tecnicamente equipado”, isto é, uma protopolítica, enquanto sendo uma relação muito regredida com o poder, sendo “a forma mais dispendiosa da manutenção da ordem capitalista”, e a partir de um horizonte de valores conservadores difusos, assim Debord complementa sobre a ideologia do fascismo:
“Se o fascismo se lança na defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), reunindo a pequena burguesia e os desempregados desnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência da revolução socialista, ele próprio não é fundamentalmente ideológico. Ele [fascismo] apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação numa comunidade definida por pseudovalores arcaicos: raça, sangue, chefe”.

A partir disto, uma vez que o fascismo nem sequer alcança o status de bandeira política, ou mesmo de ideologia madura, diferentemente do liberalismo, do socialismo ou do anarquismo, será que o tipo bolsonarista, ao assistir a farsa da família do mito, vendo-se abandonado no Congresso e pelo próprio governo, talvez possa despertar da sua condição protopolítica? Será que pode haver uma tomada de consciência, ainda que minimamente, para a barbárie genocida que, devido ao e junto com o Covid-19, ocorre e corre sem escrúpulos no Brasil?

Não sabemos ainda. Mas este “despertar”, tímido e ainda ambíguo, chegou tarde demais para pessoas como o Major Olímpio e para muitos outros exemplos. O destino venceu sua autonomia. Por isto, resta saber quantas pessoas bem intencionadas ainda padecerão pela “difícil escolha” que tiveram de fazer em 2018, naquelas trágicas eleições?

Agora, aguardamos a melhora dos números pandêmicos para se tentar ocupar as ruas de novo, como se ocupou em 2019 contra umas das pessoas mais ridículas da República, devido às suas declarações contra as universidades públicas e seus estudantes. E em meio a este texto cafona sobre a tragédia real brasileira, resta, por fim, saber: quando ocupar as ruas será uma opção de novo? E, por fim, se um dia essa crise passar, haverá como perdoar nossos parentes e amigos pelo delírio protopolítico muito real em que vivem?