Bemdito

Ninguém me ama, ninguém me quer

Novena boêmia pelo centenário de Antônio Maria, o cronista cardisplicente
POR Xico Sá

Começo aqui no Bemdito a novena boêmia pelo centenário de Antônio Maria, o cronista cardisplicente

Xico Sá
bemditojor@gmail.com

O tempo não é de festa, mas é preciso levantar, urgentemente, um brinde a Antônio Maria. Um brinde ao homem que levou a vida noturna para a crônica brasileira – até então muito solar e cheia dos passarinhos de Rubem Braga. Não apenas um brinde, uma novena boêmia com músicas de fossa e benditos mundanos, porque daqui a nove noites celebraremos o centenário do “Menino Grande”, sua melhor definição, um insone nascido em 17 de março de 1921, no Recife.

Deixemos que ele mesmo se apresente, como quem chega no bar, com seus 120 quilos de lirismo e 1m80 de sombra solitária: “Com vocês, por mais incrível que pareça, An­tônio Maria, brasileiro, can­sado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha o próprio coração). Profissão: esperança.” 

Foi com esses cravados 43 que o cronista do amor louco tombou, vítima de infarto, na calçada da boate Le Rond Point, rua Fernando Mendes, em Copacabana, no dia 15 de outubro do ano brabo do golpe militar de 1964. Deixava a ex-mulher Mariinha Gonçalves Ferreira, os filhos Maria Rita e Antônio Maria Filho. Nos bares da cidade, fez-se um velório chorado a cada uísque dos amigos Vinicius de Moraes,  Dorival Caymmi, Aracy de Almeida, Dolores Duran, Millôr Fernandes, Paulo Francis, Ivan Lessa, entre outros copos ilustres ou anônimos.

O cronista morreu em um momento de fossa digno das suas canções. Ainda roía de amores pela modelo Danuza Leão (mulher do seu chefe Samuel Wainer, do jornal Última Hora), com quem vivera um romance cujo fim pode ser creditado ao hiperbólico ciúme do homem chamado Maria. Está lá o cardisplicente estendido no chão.

Ninguém amava e tampouco ninguém trabalhava como este locutor pernambucano que passou por emissoras de rádio de Fortaleza e Salvador até sentar praça no Rio de Janeiro. O homem fazia de um tudo: narração de futebol, roteiros para programas de humor -escreveu para o cearense Chico Anísio -, reportagens policiais, caricaturas, cutucadas políticas no “corvo” Carlos Lacerda, crônicas de jornal  e as melhores faixas de amor desesperado que se tem notícia na música intergaláctica.

Escuta essa, com seu intérprete predileto: “Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama de meu amor/ A vida passa, e eu sem ninguém/  E quem me abraça não me quer bem”.
É, simplesmente, “o hino nacional da derrota amorosa”, segundo o cronista Joaquim Ferreira dos Santos (O Globo), biógrafo e responsável por edições de inéditos, diários e reedições do universo Antônio Maria. Garçom, por favor, mais um uísque. Sem gelo, afinal de contas, quando a vida dói, drinque caubói. 

Ainda na sonoridade, só para mostrar o estrondo lá fora, Manhã de Carnaval na agulha. Parceria com Luiz Bonfá, foi composta para a trilha do filme Orfeu Negro (1959), dirigido por Marcel Camus, e virou xodó de todo e qualquer grupo de jazz norte-americano importante. Opa, deixo uma preciosa dica: escute versão de Wilson das Neves e Jorge Du Peixe (Nação Zumbi). Coisa linda. Tem no Youtube.

“Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama de Baudelaire”. Aí já temos o homem chamado Maria tirando onda do seu próprio sofrimento. Era um dos seus números favoritos. Mais um brinde ao “Menino Grande” e agora centenário.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros. Está no Twitter.

Xico Sá

Jornalista e escritor.