Bemdito

Nunca fomos tão menos amigos

A conveniência do isolamento social quando a convivência com amigos de infância ideologicamente opostos se torna impossível
POR Cláudio Sena

A conveniência do isolamento social quando a convivência com amigos de infância ideologicamente opostos se torna impossível

Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com

Quem diria, aquela amizade de aço selada na infância que sobrevivera a terríveis desentendimentos, à distância e ao tempo seria completamente desestabilizada? Logo por questões políticas. Ou ainda bem que por isso? Antes, era briga por candidato, partido, coligação que, geralmente, ocorriam por ondas. Ódios passageiros e feridas curadas com esparadrapos. Cervejas, música e um mínimo desejo de resgate dos afetos sobrepujam qualquer plano de retaliação. Tenho a impressão que o cenário mudou.

Há também mais um ingrediente nesta caudalosa sopa emocional. Uma doença que tratou de unir a todos para depois separar, bem separadinho. O que já não ia bem por conta de terceiros (ou de primeiros nas campanhas eleitorais) agravou-se. Confrontam-se mais que opiniões contra e a favor em relação ao aborto, à maconha, à arma de fogo, ao casamento homoafetivo, às cotas nas universidades e a um bocado de etc’s que merecem bom debate. Não é mais só papo de esquerda, direita, centro ou centrão. Com o vírus solto, agora a batalha é também por algo que nos condiciona à vida: o ar.

E, por falar em ar, é justamente na indiferença aos pulmões alheios que os piores sentimentos crescem. Para gerar esse abuso misturado com mau agouro, a realidade nem precisa necessariamente envolver a entourage dos ex-amigos. Muitos dos que lutam pela vida são desconhecidos, motivos supostamente distantes, longe dos eventos que ligam esses antigos aliados. Enquanto, para um, o estopim da confusão dá-se pelos números anônimos, para o outro, trata-se de uma, duas ou mais 300 mil filhas e filhos, mães, pais, primas, primos, tias, tios e pessoas de significado importante. Um cruzamento do quantitativo frio com o qualitativo quente, número versus gente. Não devia ser, mas essas coisas batem diferentes, mesmo naqueles que cresceram juntos.

Os limites da educação, da tolerância, da força das memórias, da gratidão, do “deixa para lá” foram irreversivelmente transpostos. Caminho sem volta, ao que parece? O esforço de perdoar quadruplicou-se. Desfez-se a obrigação de seguir nas redes sociais e de, no futuro, manter-se à mesa quando chegar o tal “reduzido a conhecido de vista” que antes fora alguém do peito. Admitamos que há dedicação nesta apartação. Tem vezes que é mais fácil aceitar e traçar maneiras de suportar. Porém, a questão é que se criou uma muralha de gastura misturada com ranço que impede o convívio em algumas situações, sobretudo naqueles que se tem escolha. O isolamento social, neste caso, coube perfeitamente. Aos que já não queremos ver, agora não podemos, com uma boa justificativa. Por ora, fique aí mal acompanhado de você mesmo.

Ser humano é um bicho complicado. Por isso, assumo que este texto tem tom de projeção boba, de previsão de cristal, mas arrisco-me a dizer que vai sobrar pouco espaço aos arrependidos tardios ou aos ex-orgulhosos, aqueles que, de algum modo, no passado recente, apostaram contra a ciência e contra os próximos. Vamos aguardar as eleições de 2022 e o controle da pandemia para decidir se nós (com isto, entrego meu lado) resgataremos estes ex guardados embaixo de sete chaves, momentaneamente bem longe do coração da gente.

Cláudio Sena é professor e publicitário. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.