Bemdito

O fim da elegância discreta

A necessidade criada pelo sistema de gritarmos cada passo dado nas redes sociais e os efeitos de quem dispensa os holofotes
POR Cláudio Sena

Será o fim daquela timidez charmosa, do bico calado por opção própria? Tinham seus encantos as vozes baixinhas, o gaguejar, o parar para pensar, a demora para responder. Mesmo um titubear, até desistir de explicar, com um “deixa pra lá”. Parece que agora a ordem é ter voz. E alta. De preferência, com certeza do que é dito. Melhor ficar em dívida do que em dúvida. 

Em parte, faz sentido. É tempo de despertar. Acordamos para tantas coisas e causas. Se a gente não falar, pode ficar pior. Vociferar ou deixar o silêncio terraplanar o terreno para o castelo do ditador? Além disso, a atenção parece ter virado uma espécie de bitcoin duradouro, um commodity valioso.

Há outra questão: somos impulsionados e, sobretudo, condicionados a reagir. O que nos agrada e, principalmente, o que não nos agrada na aula, na fila da lotérica, no governo, na família, tudo pode virar pauta diária deste Reclame Aqui em que tem se convertido o Twitter, Instagram e Facebook da vida. Ou seja, tem lugar de sobra para isso.

Às vezes, o que não se tem é audiência e, na busca desta, tome grito em forma de manifesto, fotografias, imagens, ilustrações e vídeos de dancinhas sincronizadas. Haja vida para preencher esses espaços de fala.

Nos amarramos em sistemas que nos obrigam a narrar nossa rotina. Ou melhor, a gritar nas redes sociais. Para cumprir tabela, justificar salários ou massagear o ego. Vejam meus trabalhos. Vejam quem eu ajudo. Vejam o que eu leio. Vejam, estou relaxando. Vejam, uso máscara. Vejam, não uso agora, mas usei a semana toda. Neste desenrolar da exibição naturalizada, o mistério de cada um esvai-se ou esconde-se ainda mais. O que fica exposto é aquilo que querem que nós vejamos e que acreditemos. O silêncio e a margem para a dúvida são esmagados pelas certezas daqueles que, às vezes, tão novos, já decidiram suas próprias vidas. Essa gritaria faz do já retraído, ainda mais escanteado, o coitado.  

Há que se fazer uma ressalva. Quando falo dos tímidos, não me refiro necessariamente aos indiferentes, ao estilo Mersault camusiano, ou aos que desistiram de ocupar seu lugar social, como no caso dos hikikomoris japoneses, vencidos pelas forças que os fazem isolar-se anos em seus quartos. Nem do flâneur orgulhoso de seu não-ofício. 

Trato dos que regulam para baixo o tom de voz e deixam vazios espaços de comunicação. São os que demoram a levantar a mão na sala de reunião, não por insegurança, mas por falta de pressa ou pela espera da ocasião apropriada. Os que aguardam para ver o que acontece. Os que ponderam sobre se há necessidade de falar ou postar. Os que aguardam serem perguntados. Os que têm seus próprios tempos e uma boa parcela de emoções guardadas. 

Hoje é comum que as “na dela” e os “na dele” paguem o preço pela sua postura contida: o esquecimento e, o pior, o (mau) julgamento. Enquanto ocupam-se da própria vida e de si, são regulados pelos outros. Correm o risco de terem a eles e elas atribuídos a pecha de quem não trabalha, de quem esconde algo e não tem amigos, que é de difícil convívio. Em tempo de isolamento social, o quadro agrava-se. Ora, nem com restinho de convívio presencial involuntário podem contar os moderados para menos. 

Independentemente do que está posto agora, a voz baixinha tem efeito. Que seja assim. Mesmo na linha nova baianiana, pela lei natural dos encontros, espero topar com colegas quietos, sem forçar, claro. Aguardo o que possa emergir daqueles que dispensam os holofotes não por vaidade, mas por falta de vontade e seguem fiéis à discrição de nascença. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.