O presidente equilibrista e o “toma lá, dá cá” do orçamento paralelo
O preço dos conchavos da velha política, prática que Bolsonaro prometeu não reproduzir, mas na prática faz
Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br
Bolsonaro foi eleito em 2018 vendendo o discurso de outsider. Prometeu governar abrindo mão do “toma lá dá cá da velha política”. Afirmou que não negociaria com partidos, mas que dialogaria com as bancadas temáticas, fugindo, assim, das práticas tidas como clientelistas, apontadas como comuns aos seus adversários.
Nos primeiros meses de governo, Bolsonaro tentou implementar a sua agenda por meio das famosas bancadas BBB (Boi, Bala e Bíblia). O que se mostrou inviável, tendo em vista uma série de limitações regimentais e institucionais. Só para citar algumas: bancadas temáticas não têm poder de definir agenda; não têm disciplina (partidária); e não possuem tamanho inconstante, o que torna complexo o cálculo para formação de maiorias, variável importante nas votações no Congresso.
Como já discutido em artigo anterior nesta coluna, em 24 de abril, o arranjo institucional brasileiro estimula um tipo muito específico de relacionamento entre Executivo e Legislativo, a saber: o presidencialismo de coalizão. Segundo esse modelo, o governo depende da formação de grandes coalizões (construir maiorias parlamentares) para efetivar sua agenda de governo.
Esse modelo foi rejeitado pelo presidente, ainda quando candidato, porque, segundo ele, representa o que “haveria de pior na política” – numa completa incompreensão da estrutura e do funcionamento do presidencialismo de coalizão.
A despeito da discussão ética e pragmática sobre a gramática da política brasileira, o fato é que o presidencialismo de coalizão não é uma escolha de chefes do Executivo. É um fato que se impõe.
(E um ponto que vale destacar: coalizão não é sinônimo de corrupção!)
No entanto, o governo Bolsonaro desenvolveu um método específico de ação. Se, por um lado, não apenas recusa adotar, como hostiliza os instrumentos habituais da política – negociação e compartilhamento de poder, só para citar alguns -, numa clara tentativa de manter a narrativa que o levou à presidência, por outro, loteia cargos do segundo e terceiro escalões do governo. Também disponibiliza presidências de estatais com ampla capacidade de mobilização de recursos e obras, além de permitir que parlamentares (aliados) interfiram discricionariamente sobre o orçamento de Ministérios. Tudo isso em troca de apoio político.
O presidente sabe da necessidade de manter o mínimo de apoio político no parlamento, seja para viabilizar sua agenda, seja para mitigar possíveis desgastes que eventualmente produzam instabilidade política no seu governo. Ao mesmo tempo, no entanto, é refém da narrativa que o elegeu. O perfil beligerante, a manutenção da polarização política e o discurso de outsider com o qual constantemente fricciona as instituições são alguns dos elementos que têm garantido aqueles 25% de base eleitoral que podem levá-lo ao segundo turno em 2022.
É por isso que as suas manobras para a construção de uma base política, ainda que precária, com o Centrão, são feitas fora dos holofotes, como se diz na linguagem popular, “por debaixo dos panos”. Afinal, Bolsonaro não quer se indispor com seu eleitorado fiel ou romper a áurea de “bastião da moralidade política” que finge ser.
Um exemplo desse modus operandi foi exposto em reportagem exclusiva do jornal Estadão, no último dia 10 de maio. Segundo o repórter Breno Pires, um “orçamento paralelo” de R$ 3 bilhões foi “disponibilizado” para parlamentares do Centrão em troca de apoio ao governo. Esse esquema de “cotas”, oriundo de recursos do orçamento do Ministério do Desenvolvimento Regional (comandado por Rogério Marinho, sem partido), funcionava desde o final do ano passado. Os recursos eram destinados aos seus redutos eleitorais e distribuídos aos parlamentares segundo critério de “apoio ao governo federal”. A reportagem apontou ainda superfaturamento na compra de equipamentos agrícolas (tratores, retroescavadeiras, carretas agrícolas, etc.) por valores muito acima dos preços de mercado.
Do total, 42 parlamentares (37 deputados e 5 senadores) estariam sendo beneficiados pelo esquema. Entre eles, a reportagem identificou o presidente da Câmara Federal, Arthur Lira (PP-AL), o ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o ex-vice-líder do governo, major Vitor Hugo (PSL-GO).
Não estou dizendo que compor alianças e, portanto, compartilhar funções, pastas no governo e cargos seja ruim ou moralmente negativo. A política é feita de troca, negociação, compartilhamento de poder. A questão que levanto é a forma como esses acordos são tecidos.
Num regime democrático, há critérios que balizam a construção de coalizões. E um deles é a transparência, que foi completamente ignorado no caso citado acima. Além disso – é importante repetir -, compor alianças é parte imprescindível do jogo político.
O problema é que esse modelo de relacionamento entre Executivo e Legislativo adotado por Bolsonaro é extremamente instável e de alto custo. Na medida em que Bolsonaro aposta numa política beligerante e preocupada (quase que exclusivamente) com a manutenção de sua base fiel, ou seja, investindo numa campanha política permanente, inviabiliza seu governo, sobretudo pela falta de articulação com outro poder igualmente importante: o Legislativo.
Fragilizadas as pontes com o Congresso, resta ao presidente fazer uso daquilo que, em seus discursos (e apenas no discurso), rejeita: a “política do toma lá dá cá”. É um equilíbrio precário.
Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.