Pés descalços no primeiro continente
Descobertas sobre linguagem e afastamento, rupturas e recomeços no cinema de Robert-Jan Lacombe
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
Estalos ao longe, gorjeios, cacarejos, zunidos e outros sons da floresta. Após o título “Kwa Heri Mandima”, na língua suaíli, duas fotos impressas se encaixam horizontalmente formando a cena panorâmica na qual se percebe um pequeno avião do lado direito, para onde caminham quatro crianças aloiradas, e à esquerda muitas pessoas reunidas, todas pretas, sobre o verde abundante da paisagem. Uma voz em francês diz que aquele era o dia da partida e afirma: “foi teu pai quem fez a foto, tu vais apanhar o avião com teus três irmãos mais novos”. Gosto imediatamente daquela voz, quero que me fale um pouco mais de perto, que sopre no meu ouvido.
Assisti ao curta-metragem documental “Adeus, Mandima” (2010) na companhia de Luquinhas, Natália, Rodrigo, Elisa e Novão, dentre outros colegas da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes. A instituição, vinculada à Secretaria de Cultura de Fortaleza, foi fruto do sonho maravilhoso de uma geração de pesquisadores e realizadores de cinema. Há dez anos minha turma e eu adentrávamos a escola, uma casa situada na vila de sindicatos no centro da cidade, e subíamos ao primeiro andar por uma escada circular. Ao lado da varanda, estava nossa sala: um projetor fixo no teto, cadeiras mais ou menos enfileiradas, cortinas pesadas para cortar a luz e paredes de um branco tão bem comportado que muitos talvez não suspeitassem que ali era ponto de encontro de jovens artistas.
Estudávamos cinema porque éramos curiosos, inquietos, um tanto perdidos aos vinte e poucos e, acima de tudo, porque amávamos as possibilidades de experiência produzida nos encontros, tanto entre a gente, como entre imagem e som. “Adeus, Mandima” me seduziu pela simplicidade com que foi feito: um arranjo de fotografias de família postas em sequência e narradas por uma voz calma, quase impassível diante das recordações da infância vivida em África. Robert-Jan Lacombe realizou o filme ao final de um semestre dedicado ao documentário no curso de cinema da Universidade de Artes e Design de Lausanne. O esporte foi o tema proposto para a turma, então Rob-Jan, como é chamado pelos próximos, quis procurar fotos de quando jogava futebol em Mandima, vilarejo remoto no antigo Zaire.
Deparar-se com o vasto arquivo de imagens da família referente à vida nos anos noventa lhe trouxe um novo direcionamento. Ele quis duvidar das lembranças, esgarçar o véu do tempo e conversar com o pequeno Rob-Jan que costumava pescar e subir em árvores. Desejou reconectar-se às memórias dos pés descalços e seus então companheiros inseparáveis no primeiro continente, além de investigar quais fagulhas cruzaram os anos e o incitam ainda hoje. Deteve-se sobre a amizade, a condição do outro, a liberdade de deslocamento e o instante da partida. Não sabe se de fato despediu-se dos amigos, pois, ao analisar as imagens, percebeu seu olhar vidrado no avião como se já avistasse a Europa, deixando sem remorso todo um mundo para trás, inclusive amigos, abafados pelo frêmito das turbinas do motor.
Filho de mãe holandesa e pai francês, Rob-Jan nasceu dentro da floresta tropical e cresceu ao lado de Angi, Watumu e Amosi, africanos da sua idade com quem aprendeu a trabalhar a terra, pescar, cozinhar, jogar futebol e admirar as mulheres. Aprendeu, sobretudo, a falar com e para os amigos. A língua fazia sentido na companhia deles. Ao falar de fidelidade, Deleuze diz que a união entre as pessoas em laços de amizade não se dá em razão da comunhão de idéias, “mas por causa de uma linguagem em comum, uma pré-linguagem em comum”. O que se estabelece em meio àqueles que têm algo a partilhar entre si? O que se partilha na infância? Uma corrida, um choro, um riso, um segredo, uma bola, uma fruta, um medo.
No entanto, Rob-Jan e sua família deixaram Mandima em 1996, três meses antes de eclodir a violenta Guerra Civil que causou tantas mortes e uma enorme onda de refugiados. O menino europeu e os amigos africanos não partilhavam a mesma liberdade de ir e vir. A voz narradora, consciente da cisão irreparável entre o grupo, questiona se a criança tinha real noção do que estava a se passar. A voz aponta para frente: toda uma série de referências pop, de Nintendo a Michael Jackson, que o pequeno Rob-Jan estava prestes a conhecer a fim de pertencer a outras tribos, dessa vez em ambiente urbano numa escola francesa, por onde aprenderia a caminhar calçado, a ajustar o corpo, a praticar outro acento e inventar outra pele na relação com o sol.
Um ano após a realização de “Adeus, Mandima”, Rob-Jan retornou a África com a câmera em mãos, à procura dos antigos companheiros. Os planos mais belos em “De volta à Mandima” (2011) curiosamente não foram feitos pelo realizador, jovem estudante de cinema, inteirado dos recursos audiovisuais, mas por Watumu que operou cheio de ânimo o equipamento. Ele experimentou o zoom e chacoalhou a câmera, fazendo ziguezagues pela camisa e o rosto de Rob-Jan: uma porção de saliva sobre o lábio inferior, o rosa da língua, os fios da barba de três ou quatro dias, os pequenos sinais marrons na lateral do pescoço, o céu espelhado na íris.
Enquanto Watumu o fitou por trás da lente, Rob-Jan lhe perguntou sobre a vida de soldado, ao que ele respondeu brevemente “é trabalho, é ruim” e se recusou a prolongar o tema. Àquela altura, quinze anos depois, certos assuntos já não poderiam ser tratados, como certas diferenças produziram afastamentos sem volta. Ainda assim se podia rir, dizer coisas pouco importantes e descalçar os sapatos para um mergulho no rio.
Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.