Bemdito

Precisamos falar sobre violência política de gênero

15 anos após a Lei Maria da Penha, ainda é preciso desnaturalizar a violência de gênero, desta vez no espaço político
POR Monalisa Soares
Foto: Alesp

Mesmo 15 anos após a aprovação da Lei Maria da Penha, ainda é preciso desnaturalizar a violência de gênero, desta vez no espaço político

Monalisa Soares
monalisaslopes@gmail.com

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, o Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) tornou pública sua decisão no caso da denúncia de assédio do Deputado Fernando Cury (Cidadania-SP) contra a Deputada Isa Penna (PSOL-SP). A sanção: suspensão por 119 dias. A solução ampliou a repercussão em torno do mais recente caso de ampla visibilidade de violência política de gênero. A indignação face o desfecho do caso se revela, especialmente, por se tratar de prática que redundou em denúncia com investigação a ser conduzida pelo Ministério Público. Esse fato foi insuficiente para levar o colegiado do Conselho a denotar a gravidade do ato na penalidade estabelecida.

A violência política de gênero se manifesta através de ações que visem a impedir as mulheres de exercerem seus direitos políticos (votarem, serem votadas, exercerem mandatos), são ações caracterizadas por agressões físicas, sexuais e psicológicas. Em geral, tais agressões assumem formas já conhecidas pelas mulheres que se adensam no campo político: terem suas posições ignoradas, serem julgadas por sua aparência, questionadas por sua vida privada, colocadas em posições de menor relevância, terem suas vozes e argumentos descredibilizados e/ou interditados, etc. Além de agressões, a violência política se expressa também em dimensões econômica, moral e/ou simbólica que incidem sobre a atuação política das mulheres.

A experiência da violência política transpassa a trajetória de mulheres em vários lugares do mundo. A União Interparlamentar (2016) realizou um levantamento em 39 países, consultando deputadas sobre o tema, e obteve os seguintes dados: a) 81,8% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido violência psicológica; b) 44,4% indicaram ter vivido episódios de ameaças de morte, estupro, espancamento e c) a violência política no espaço do parlamento foi relatada por cerca de 25% das entrevistadas. Por fim, 39% das deputadas reconheceram que tais experiências comprometem a plena efetivação de seus mandatos.

Destaque-se que essa violência não distingue as mulheres por ideologia, como evidenciou o projeto MonitorA, realizado pelo Instituto Azmina em parceria com o InternetLab. A análise realizada no primeiro turno das eleições municipais brasileiras de 2020 apontou que Joice Hasselmann (PSL-SP) e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) lideravam o ranking das candidatas que mais sofreram ataques através de tweets com xingamentos. Entre as ofensas: críticas aos atributos físicos das candidatas, aspectos morais de suas vidas privadas, entre outros.

Em contextos eleitorais, além das agressões, as candidatas enfrentam as assimetrias impostas pelas direções partidárias, especialmente no que diz respeito ao financiamento de suas campanhas. Outra pedra neste caminho são as estratégias que alguns partidos mobilizam para burlar a legislação de cotas que exige percentual mínimo de candidaturas femininas. Dados do TSE indicam a preponderância de mulheres entre as supostas candidaturas fictícias. Roberta Laena, em estudo realizado com candidatas no Ceará, evidenciou como esse processo das candidaturas fictícias configura mais uma faceta da violência política de gênero.

As mulheres que conseguem ultrapassar as barreiras impostas nas disputas eleitorais, ao adentrarem na política institucional, passam a experimentar outros conteúdos dessa violência que impactam diretamente sua atuação. Quando essas experiências são perpetradas no espaço do Parlamento por representantes políticos, cabe aos Conselhos de Ética das casas legislativas apurarem as denúncias e instalarem procedimentos disciplinares, aplicando a pena definida em votação do colegiado do órgão parlamentar.

Na Câmara dos Deputados, estudo de Tássia Rabelo revelou que o Conselho de Ética reproduz a baixa presença de mulheres em sua composição. Nunca tendo sido presidido por uma mulher, no período do estudo (2002-2018), o Conselho teve apenas nove mulheres entre 118 membros titulares e outras 12 suplentes num universo de 112. Tal configuração do espaço nos sugere como foram tratados os casos de violência política de gênero apreciados pelo colegiado: dos sete casos identificados, todos foram arquivados. Ou seja, nenhum dos episódios gerou qualquer tipo de penalidade aos parlamentares denunciados.

O caso Isa Penna não teve o mesmo desfecho de arquivamento. A importunação foi filmada e retransmitida nas TVs e telas de smartphones. A forte repercussão pública sugere que não haveria como contornar o prosseguimento da denúncia. Seguidos os trâmites do processo, em sessão, o relator do caso, Emidio de Souza (PT), apresentou voto pela suspensão de 6 meses de Fernando Cury. Logo após houve pedido de vistas do processo, o que adiou a votação. No retorno, dia 05 de março, o deputado Wellington Moura (Republicanos) apresentou voto divergente sugerindo suspensão por 119 dias. A votação ocorreu neste mesmo dia e a proposta de Moura ganhou por cinco votos a quatro. Como o diabo mora nos detalhes, neste caso o problema está justamente no fato de que, a priori, conforme regras da Alesp, Cury continuará a ter seu gabinete em funcionamento, com os funcionários remunerados para desempenharem funções de interesse do mandato do deputado. Para bons/as entendedores/as, fica evidente a não efetividade da suspensão. A ver, como o plenário da Alesp irá apreciar tal solução.

Os exemplos listados aqui demonstram a naturalização com que a violência política de gênero é tratada no ambiente institucional. Os movimentos feministas e de mulheres levaram anos lutando para que houvesse o reconhecimento, nas esferas pública e estatal, da relevância do enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres, especialmente, no ambiente doméstico. Disso resultou a Lei Maria da Penha (11.340/2006). Estamos aqui, quinze anos após a aprovação desta última, mais uma vez buscando desconstruir e enfrentar a violência de gênero que teima em cruzar nosso caminho, desta vez no espaço político. Precisamos desconstruir as práticas que afastam as mulheres do ambiente político e disseminam o imaginário de que não somos qualificadas para esta atuação.

Necessário discutirmos, como fizemos antes, a implementação de normativas legais que coíbam tais práticas. Já foi apreciado na Câmara dos/as Deputados/as, em dezembro de 2020, o Projeto de Lei 349/15 que trata da violência política de gênero. A matéria aguarda análise do Senado Federal. Mais do que nunca, precisamos falar sobre violência política de gênero, acompanhar a tramitação da legislação e reivindicar formas efetivas de enfrentar essas barreiras que se interpõem às trajetórias políticas das mulheres.

Monalisa Soares é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (LEPEM) com ênfase em campanhas eleitorais, gênero e análise de conjuntura. Está no Instagram.

Monalisa Soares

Doutora em Sociologia e professora da UFC, integra o Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia e se dedica a pesquisas na interface da comunicação política, com foco em campanhas eleitorais, gênero e análise conjuntura.