Bemdito

Receita para piorar a pandemia

Veto cínico de Bolsonaro ao PL que suspende despejos e remoções põe em risco 336 mil vidas
POR Rodrigo Iacovini
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Matéria publicada no último domingo, dia 8 de agosto, na versão impressa da Folha de S. Paulo destaca como a crise instalada no país – em suas dimensões econômicas, políticas e sociais – está diretamente forçando diferentes profissionais (de metalúrgico a garçonetes, passando por músicos) a viverem nas ruas.

A Agência Pública também produziu, em junho, um relato profundo e comovente da situação enfrentada por famílias que perderam suas casas durante a pandemia. Essa situação configuraria uma violação do direito à moradia em qualquer momento que ocorresse, mas se torna dramática e, literalmente, uma questão de vida e morte numa pandemia. Afinal, como obedecer à diretriz “fique em casa” sem ter uma casa?

A epidemia de despejos e remoções precede em muito a atual pandemia causada pelo coronavírus. Há anos, movimentos e organizações da sociedade civil vêm denunciando os efeitos perversos e disruptivos dessa violação sobre a vida das famílias impactadas.

A Aliança Internacional de Habitantes tem impulsionado, inclusive, a realização de tribunais populares para julgar essas situações, apontando as inúmeras injustiças e ilegalidades contidas em casos emblemáticos – e que, usualmente, são encontradas também nos milhares de outros despejos e remoções.

Ao nos depararmos ano passado com o coronavírus e a pandemia, rapidamente movimentos e organizações brasileiras entenderam que seus impactos seriam devastadores para aquelas famílias que vivem em situação de insegurança habitacional, seja por já terem sido removidas ou despejadas, seja por estarem em situação de ameaça.

A Campanha Despejo Zero emerge então como forma de enfrentar essa situação, mapeando despejos e remoções já realizadas, identificando potenciais ameaças, produzindo estratégias de prevenção, advogando por marcos legais que suspendam a execução dessas ações. 

Dentre estas iniciativas, a coalizão de organizações da sociedade civil vinha impulsionando em parceria com congressistas preocupados com o tema, como a deputada Natália Bonavides (PT-RN),  o PL 827/2020, que tinha por objetivo suspender a realização de despejos e remoções pelo menos até o final deste ano.

Ainda que com derrotas ao longo do caminho, o movimento conseguiu mobilizar e pressionar para que o PL fosse aprovado pelo Congresso Nacional em julho deste ano, mais de um ano e quatro meses depois do início de sua tramitação. A morosidade do Legislativo só não foi pior do que a desumanidade do presidente Jair Bolsonaro, que na semana passada vetou o projeto, sob o argumento de que a iniciativa colocaria em risco o direito à propriedade.

“Além disso, a proposição está em descompasso com o direito fundamental à propriedade, tendo em vista que, ao propor a suspensão do cumprimento de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas nas relações locatícias, conduziria a ‘quebras de contrato’ promovidas pelo Estado, de modo que aumentaria o risco da atividade imobiliária, com a consequente possibilidade de aumento dos preços dos aluguéis, além de poder potencializar a inadimplência do setor, afirma o texto do veto de Bolsonaro.

Apenas para exemplificar o tamanho absurdo do argumento, um dos países considerados modelo pelo presidente, os Estados Unidos suspenderam por aproximadamente 11 meses os despejos. Ao contrário do Brasil, trata-se de uma nação que sequer reconhece o direito à moradia enquanto direito humano, não tendo até hoje ratificado o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Mesmo assim, com pesquisas que demonstraram como despejos e remoções levam a um aumento das infecções por coronavírus e que isso ocorre principalmente em bairros ocupados por grupos sociais historicamente já vulnerabilizados no país, como pessoas negras e latinas, decidiram que a moradia deveria ser protegida neste momento por uma questão de saúde pública.

Diversos outros países também adotaram iniciativas de proteção à moradia no contexto da pandemia, mas aqui o nosso presidente considera que essa suspensão “daria um salvo conduto para os ocupantes irregulares de imóveis públicos, os quais frequentemente agem em caráter de má fé e cujas discussões judiciais tramitam há anos”.

O cinismo de Bolsonaro demonstra desconhecer limites com essa afirmação, tendo em vista que o próprio governo “planeja privatizar ou conceder áreas públicas em praias do país para estimular o investimento de grupos hoteleiros e o recebimento de cruzeiros internacionais”, conforme noticiou a Folha de S. Paulo em maio deste ano.

Para Bolsonaro, o patrimônio público serve para resorts e cruzeiros, mas não pode correr o risco de servir de moradia para a população ameaçada pela pandemia. A pressão da sociedade civil agora sobre o Congresso Nacional para a derrubada do veto deve deixar claro: acatar a canetada do presidente significa compactuar com esta lógica.

Dizer não à morte, neste momento, passa necessariamente pela proteção da moradia. Afinal, 84 mil famílias ainda correm o risco de serem despejadas em plena pandemia. São mais de 336.000 brasileiros sob ameaça. Nenhuma propriedade – privada ou pública – vale 336 mil vidas. Não há propriedade que valha uma vida sequer.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.