Tatear a sombra
Sobre os perigosos traços de caminhos não previstos
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
As origens do desenho tradicionalmente remontam ao mito de Dibutade, jovem coríntia que teria traçado o contorno da silhueta do amante, no momento de sua partida. Ela foi obrigada a separar-se dele, mesmo estando apaixonada. Ao partir, a sombra do homem se projeta na parede, num rochedo ou num véu, e é com base nessa projeção, nos vestígios da presença daquele que já se distancia, que Dibutade se põe a desenhar. Ela então desenha o amante sem vê-lo de fato, ativando mãos e memórias, movida por um desejo de apreensão do corpo que não mais poderá tocar. De certa forma, está cega e desenha a ausência.
Em 1977, Jorge Luís Borges foi conduzido pela elegante Maria Kodama até a pequena mesa posta sobre o palco do Teatro Coliseo, em Buenos Aires. Ela ainda lhe tomou a mão esquerda e o fez tocar suavemente o copo de água que em seguida ele agarrou e levou até a boca, sorvendo bons goles antes de começar. Aquela era a sétima de uma série de palestras que Borges vinha ministrando. Ele discorreu num fluxo eloquente a respeito da cegueira e apenas deixou-se entrecortar por instantes bruscos de emoção. Uma emoção contida, quase engasgada, acidental como o soluço.
A degeneração genética da retina foi herdada do pai e da avó, e nunca lhe ocorreu de forma desesperada. Àquela altura, já havia perdido por completo a visão de um olho e parcialmente a do outro. A cegueira foi se instalando gradualmente desde 1929. A partir de então, segundo Borges, um “lento crepúsculo” passou a envolvê-lo. Talvez para ele um certo mundo se encerrasse, pensamento que logo o convocou a entreabrir um futuro, para além da visualidade imediata. Entregou-se a sonoridades, visagens e cenas fisgadas nas lembranças.
Decidiu criar um grupo de estudos com ex-alunos da disciplina de Literatura Inglesa, que costumava ministrar na Universidade Argentina. Nas reuniões do grupo em seu escritório, dedicavam-se a aprender o anglo-saxão, forma arcaica do inglês. A leitura de textos vindos de uma época tão remota lhe possibilitou experimentar a palavra como talismã, como receita poderosa que deve ser dita em voz alta e causar espanto. No idioma desconhecido, a palavra pode ser colhida, manuseada e, no atrito com a pele, percebida em textura, volume, peso e calor.
Ao pronunciar aquelas estranhas sequências de sons, invadia-lhe uma alegria secreta, tal qual o arqueólogo que escava com afinco e curiosidade os pequenos utensílios pertencentes a um povo que há muito desapareceu. Publicou livros de poesia cujos versos, não mais escritos de punho por ele, exigiam o enraizamento na memória e o corpo da voz. Ao falar sobre as cores, explicou que o verde e o azul, ainda que pálidos, seguiam fazendo-lhe companhia. O amarelo permanecia presente e o transportava à infância, ao dia em que se deparou com o ouro e o preto na pelagem dos tigres, num zoológico em Palermo. Sentia saudades do preto e, sobretudo, do vermelho, escarlate, cor que o havia abandonado.
Tal estado não se tratava da escuridão absoluta, como é comum se pensar acerca dos cegos. A deficiência na percepção dos estímulos visuais, no caso de Borges, mais parecia a neblina densa de um cinza luminoso e opaco, nunca branco, às vezes puxado para o verde ou o azul. Então sua cegueira não se opunha exatamente à visão, mas lhe fez adentrar outras possibilidades de vislumbrar, de tecer imagens que não se bastavam na visibilidade pura.
No livro Pensar em não ver: Escritos sobre as artes do visível*, Jacques Derrida associa as práticas do desenho e da pintura à experiência da cegueira. Para Derrida, o desenho de fato só acontece quando quem desenha já não pode prever os percursos do traço, quando se perde o controle da linha e ela ganha espaço para apoderar-se, conduzir e surpreender, produzindo um desenho inesperado. Significa que o desenho não foi antevisto por quem desenha.
A ênfase de Derrida, para a noção de ver, dá-se na capacidade de perceber a aproximação, o horizonte da vinda, a chegada de algo ou alguém. Quando se enxerga algo que vem em direção a si, é possível proteger-se, antecipar-se, programar-se, e assim, quem sabe, evitar o perigo. Durante o acontecimento do desenho, no momento específico em que a linha ou a própria mão, cheia de memórias motoras e sensoriais, leva aquele que desenha a percorrer caminhos não previstos, o desenhista já não enxerga e tampouco está a salvo.
Assim o desenho seria realizado sob certas condições de cegueira, pois quem desenha muitas vezes deixa-se guiar mais pelas mãos do que pelos olhos. Além disso, a matéria mesma do desenho não se evidencia com clareza: a linha, o traço, tão fundamental ao desenho, frequentemente se oculta. Ela cria as bordas dos elementos, distingue figura e fundo, modela espaços, produz intervalos, demarca horizonte, estabelece planos, ou seja, faz aparecer toda a composição, torna-a inteira visível, sem dar a ver a si própria.
Cegos veem com mãos, ouvidos e olhos desvairados, assim como desenhistas trabalham. Quando estamos diante de um desenho que nos desconcerta e hipnotiza, se nos entregamos a ele, o que ele nos faz tocar, vislumbrar e para onde nos encaminha? Em meio à História da Arte dos Homens, há um valor simbólico no retorno à narrativa de Dibutade. A dor da despedida e da ausência do amante lhe afeta profundamente, mas não a paralisa. Ela invoca a presença dele à sua maneira. O primeiro desenho é então fruto de um gesto decidido e alucinado, da experiência irremediável de saudade da mulher que desloca a linha intempestiva pelo espaço, tateando a sombra, e dá a ver o invisível, justo aqui, onde também se pode ler “amor”.
*DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível. Org. Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas; Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012.
Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.