Tomar um café na livraria e depois comprar o livro na Amazon
Gosto de conhecer uma cidade a partir das suas livrarias. Isso me causa um misto de deslumbramento e constrangimento. É porque parte do meu encanto com as livrarias lá fora vem da pouca experiência com a cultura de livrarias aqui em Fortaleza. Falo daquela livraria de rua, aquele refúgio que remete a uma atmosfera especial para quem gosta de livros – ou para quem brinca com a imaginação de que as livrarias escondem encontros para afagar o dia ou livros que mudarão o rumo das suas vidas. Eu já sou um cringe viúvo dos tempos das lojas de discos, das locadoras de filmes, e não quero ser testemunha do fim das livrarias que contrastam uma rua movimentada com um espaço para acolher os que pedem da vida um pouco mais de encanto ou de saber.
É comum que leitores experimentem a escolha sensorial de um livro em uma livraria e sigam com uma consulta no Google para ver o seu valor do livro na Internet. O link da Amazon aparece em destaque com uma proposta de preço que te faz deixar na livraria apenas o valor do cafezinho que tomou. Essa situação sempre me deixa com um sentimento de desconforto, embora saiba que é ingênuo e injusto colocar apenas na conta ética do consumidor um problema bem mais complexo. Por isso, não espere das próximas linhas uma solução para essa escolha.
A Amazon é uma representação do capitalismo contemporâneo, uma das maiores empresas do mundo, com faturamento que supera 280 bilhões de dólares. Durante a pandemia, estima-se que seu patrimônio aumentou em mais de 40%, confirmando a tendência da marca de 100 bilhões em lucro em um período de três meses. Esta semana, seu fundador, o homem mais rico do planeta, Jeff Bezos, presenteou um mundo em pandemia com a excentricidade de uma viagem turística ao espaço. Ao retornar, agradeceu aos seus trabalhadores e clientes: “vocês pagaram por tudo isso aqui”. A sensação de desconforto com o valor do cafezinho deixado na livraria do bairro aumenta nessas horas.
A experiência em uma livraria é sensorial, mas ela é também um modelo de negócio que sobrevive através da venda de produtos e serviços com todas as contas que os estabelecimentos físicos exigem. Quais as expectativas de sustentabilidade desse mercado hoje? Isso afeta não apenas um setor econômico, mas a nossa experiência de cidade, já que as livrarias são instituições fundamentais no espaço público.
Não se trata apenas de um debate sobre o declínio do livro impresso na sociedade digital, mas sobre os modelos de concorrência no setor. A pandemia atravessou e potencializou uma crise que já vinha afetando o setor comercial da cultura do livro, sobretudo em razão da ruptura com os modelos tradicionais de produção estabelecidos pelo e-commerce. A crise já vinha sendo sinalizada entre as grandes redes varejistas, como a aquisição da Fnac, a falência da Laselva e as constantes tentativas de reestruturação da Saraiva e da Livraria Cultura. O impacto é ainda maior em livrarias e editoras independentes que sobrevivem hoje, assim como elas historicamente foram espaços de resistência contra modelos tirânicos.
Não faltaram críticas a Bezos no retorno do seu rolê no espaço, retomando polêmicas que envolvem a Amazon. Questões envolvendo políticas climáticas, condições trabalhistas de funcionários, destruição estratégica de mercadorias e privacidade dos dados da clientela voltaram à tona. Há acusações de que a empresa promove um “dumping” que afeta o ecossistema de concorrência, ou seja, coloca o preço bem abaixo do mercado como investimento para impor preços altos no futuro.
Essas questões já estiveram presentes no discurso do catalão Jorge Carrión, no eco do sucesso do seu livro “Livrarias – uma história de leituras e leitores”, tornando-se um porta-voz da tese de concorrência desleal da Amazon no setor livresco, a partir de um manifesto na revista Jot Down, que foi reproduzida em diversas traduções. O texto resultou no provocativo livro “Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros”, publicado no Brasil pela Editora Elefante. Essa editora independente também se posicionou sobre o impacto da política da Amazon em pequenas editoras, ao demonstrar que a empresa comercializava os livros da Elefante por um preço que nem a própria editora conseguiria vender.
Os brasileiros e os livros
O Brasil é um país que lê pouco. Grandes centros como São Paulo, Rio e Belo Horizonte já possuíam poucas livrarias, se comparado a outras capitais da América Latina, como Buenos Aires e Montevidéu, por exemplo. Esses centros já estão assistindo a esses redutos fecharem suas portas, para desencanto do flâneur baudelairiano que queira ter os livros entre os seus cantos transeuntes na cidade.
Nesse cenário, qual a perspectiva de um dia ver Fortaleza ocupada por livrarias? Por ora, belos exemplos como a Lamarca e a Arte e Ciência, nos arredores da UFC, abraçam a sede dos consumidores em livrarias nas ruas da cidade. Ao mesmo tempo, a Amazon avança com a criação de um centro de distribuição na zona metropolitana de Fortaleza, que agilizará o tempo de entrega dos seus produtos no Nordeste.
Lembrei-me de um livro de Penelope Fitzgerald, tão bem levado ao cinema por Isabel Coixet, em que uma mulher luta com uma comunidade conservadora nos anos 50 para abrir a sua livraria. É assim que enxergo iniciativas comunitárias e combativas a esse sistema de concorrência, onde livreiros são substituídos por algoritmos e livros são armazenados em galpões junto com liquidificadores.
O Coletivo Livrarias Cariocas, que surgiu durante a pandemia, é a reunião de pequenas livrarias do Rio que se juntaram em prol de políticas comuns do setor, como busca de soluções para as medidas emergenciais da crise, oposição à taxação governamental dos juros sobre os livros, criação de uma cadeia de estímulo à leitura em comunidades, relação de livrarias com as pequenas editoras e busca de alternativas para a concorrência com a Amazon. Outras saídas, como pequenas livrarias temáticas ou clubes do livro, já conseguem sinalizar um fôlego nesse horizonte nebuloso.
Essa conversa está inacabada. Há tanto a avançar sobre ela, pois vai além de livros, livrarias, consumo consciente, nossos projetos de cidade. A pandemia que aumentou a dependência digital é a mesma que traz a carência por abraços e conexão por sentidos. Os lugares que promoverão nossos reencontros com a rua dirão muito sobre o que faremos com o mundo depois dessa tragédia. Com a licença do mercado, a livraria ainda pode ser o recanto dos sonhadores. A primeira vez que viajei ao espaço foi através de um livro.