Bemdito

O que faríamos sem os vendedores de livros?

Um elogio à sensível arte dos livreiros, que se dedicam a abastecer prateleiras para um público leitor sedento, exigente e cada vez mais exíguo
POR Juliana Diniz

Na cidade em que nasci e cresci, as livrarias são cada vez mais escassas, e isso explica a melancolia que permeia meu afeto por esses espaços. É como se houvesse me habituado a vê-los desaparecer, achando quase natural que as prateleiras de livros cedam lugar a lojas de roupas, imobiliárias ou revendas de carros. Entendê-los como espaços transitórios é penoso, porque poucos lugares são tão preciosos para leitores compulsivos quanto uma boa (e de preferência pequena) livraria. 

Pode parecer uma obviedade o que acabo de escrever, mas peço a quem me lê a paciência de algumas linhas a mais. As livrarias pequenas e especializadas são preciosas não apenas pelos volumes que guardam, mas principalmente pela presença de quem escolhe esses livros: os livreiros. É um leitor de sorte aquele que tem a felicidade de reconhecer um livreiro para chamar de seu.

A presença deles é quase sempre discreta. Embora sejam especialistas em difundir preciosidades, dificilmente são lembrados pelo trabalho fundamental que desempenham, o da curadoria. Afinal de contas, se você tem um público exigente, uma clientela fiel e um espaço diminuto, é fundamental que seja capaz de ler o que há de mais novo, recuperar as relíquias que sobreviveram ao tempo, descobrir o que vale indicar, para, assim, organizar um acervo com identidade e personalidade. Escolher é uma tarefa difícil, porque só se pode selecionar aquilo que já se conhece de antemão.

Pouquíssimas livrarias têm essas qualidades porque nem todas as lojas de livros contam com um livreiro digno do nome. Mais do que a capacidade de manter a alma alerta, um livreiro precisa ter o espírito aberto a compreender as sutilizas de quem lhe bate à porta em busca de um livro porque nem sempre chegamos a uma livraria com a certeza do que precisamos.

Se me apego às lembranças das leituras mais especiais que pude fazer nos últimos anos, me dou conta de que, quase invariavelmente, foram obras que me chegaram às mãos quando eu não sabia que precisava tanto delas. Seria injusto atribuir esse encontro apenas ao acaso: quase sempre foi graças à sensibilidade e à erudição de quem estava do outro lado da minha incompletude, observando-a. Entendendo, por vias nem sempre claras, o que me levava até aquelas prateleiras. “Você pode gostar disso” ou “isso parece com você” são declarações que revelam senso de cuidado, desejo de agradar e a elegância de um ofício: o de ler para recomendar.

Toda pequena livraria cuidada por um livreiro tem uma alma e um gosto a ser desvendado. Pode ser um programa de viagem interessante topar com as coleções livreiras que encontramos nas cidades pelo caminho: foi assim que descobri, em uma livraria de Belém, uma das mais belas e exóticas seleções de literatura europeia que já pude espiar, de fazer inveja à mais bem abastecida e opulenta livraria em São Paulo. Títulos surpreendentes, que me diziam muito do olhar e do gosto de quem mantinha vivo aquele lugar.

Como leitora e dependente de livros físicos, venho aqui reconhecer minha gratidão e fazer o meu elogio a quem nos alimenta com as páginas que necessitamos para escrever e viver. Cada pequena livraria mantida com esforço e paixão merece ser cultuada como um templo, sustentada por seu público leitor, cuidada por quem se serve de suas coleções, e não há desconto da Amazon que seja capaz de me dissuadir disso. 

Serviço

Três livrarias para descobrir e se apaixonar: em Belém, Livraria da Fox, que fica na Travessa Dr. Moraes, 584, uma seleção de literatura para acalentar a alma e os olhos; em Fortaleza, Livraria Lamarca, na Av. da Universidade, 2475, uma seleção de obras de ciências humanas bem especial, sobretudo para quem busca livros sobre política, marxismo e história; em São Paulo, Livraria Mandarina, rua Ferreira Araújo, 373, procure pelo Dionisius ou Dani, e peça os exemplares mais especiais de editoras indispensáveis e distribuídas com dificuldade, como Carambaia e Ayiné. Em todas elas é possível sentar, respirar e deixar o corpo à vontade.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.