Bemdito

Ler (e transformar!) as cidades a partir de nossas bibliotecas

Uma homenagem às bibliotecas públicas e sua força de transformação nas cidades
POR Rodrigo Iacovini
Entrada da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece) (Foto: Divulgação)

Nas últimas semanas, estive ausente do Bemdito para aproveitar intensamente duas maravilhosas invenções da humanidade: férias do trabalho e livros. O descanso da rotina de reuniões, aulas, projetos e artigos somente é possível, para mim, com uma boa dose de literatura. Tenho uma dificuldade grande em me desconectar do trabalho, por isso tiro férias da realidade através do mergulho em outros mundos proporcionados pelos livros.

Embora não trabalhasse então, desde a adolescência sentia essa necessidade de buscar refúgio na imaginação de outras pessoas e, com isso, dar uma trégua à minha mente ansiosa. Foi nessa época que surgiu a minha paixão por bibliotecas, fontes inesgotáveis desse bálsamo. O curioso é que, se me proporcionavam uma fuga da realidade, as bibliotecas da minha adolescência me conectaram profundamente às cidades.

Depois de esgotar as estantes da minha casa — que já eram privilegiadas, em comparação à maioria da população —, fui forçado a vencer minha introspecção e comodismo para obter novas (e mais pesadas) drogas literárias. A cidade em que morei até meus 14 anos, no interior de São Paulo, era pequena e acanhada, sem grandes arroubos literários e, assim, sem grandes atrativos para uma livraria. Por sorte, “no meio do caminho tinha uma biblioteca / tinha uma biblioteca no meio do caminho”.

Ela não era dada a grandes ousadias, mas me permitiu não só conhecer melhor Drummond, como também me esbaldar nas crônicas de Fernando Sabino e Rubem Braga e nas aventuras infanto-juvenis de Pedro Bandeira e Marcos Rey. Se pra ir e voltar da escola eu contava com meus pais e seus carros, as incursões à biblioteca eram momentos íntimos que não podiam ser apressados, por isso fazia questão de ir a pé, fazendo com que aos poucos tomasse gosto por navegar ruas e avenidas.

Quando a tímida biblioteca estava prestes a perder seu encanto, como mina de água que seca, uma mudança radical: aos 15 anos, fui morar em Fortaleza e, assim, ganhei novas bibliotecas e mundos para explorar. Além daquela proporcionada pelo próprio colégio, tive o prazer de passar horas na biblioteca particular de uma amiga de minha mãe e, principalmente, de passar dias na Biblioteca Pública Estadual do Ceará, a Bece, cuja recente renovação inspirou essa coluna.

Já naquela época situada na Praia de Iracema, na região do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, a Bece foi o meu El Dorado. Em vez de ouro, era seu acervo de milhares de livros que me fascinava e fazia com que desbravasse a nova cidade. Da minha casa no Papicu, cheguei a fazer algumas vezes o caminho todo a pé. Já em outras ocasiões, peguei um ônibus até a casa de uma amiga na Aldeota e de lá seguimos andando juntos. Houve até dias em que fui no Grande Circular só para poder dar uma volta maior na cidade, passando pelas Dunas, Praia do Futuro, Serviluz, Mucuripe, Meireles até chegar à Praia de Iracema. Fui conhecendo Fortaleza à medida em que garimpava semanalmente na Bece, que me levou através de seus livros — de Admirável mundo novo a Harry Potter, de O apanhador no campo de centeio a O quinze — a mais lugares do que o Aeroporto de Fortaleza.

A Bece ainda me ensinou que uma biblioteca vai muito além de um repositório de livros, constituindo um espaço para as mais diversas interações sociais. Um dos seus cinco eixos oficiais de atuação é justamente servir como “espaço de memória e ambiente de desenvolvimento social e cidadania cultural”, assumindo sua vocação de ponto de encontro e de trocas de saberes, de práticas comunitárias e de produção e circulação cultural.

Como a própria Federação Internacional de Institutos e Associações de Bibliotecas tem defendido, são equipamentos públicos fundamentais para o amplo desenvolvimento social, muito além do estímulo à leitura. No Cazaquistão, por exemplo, uma “biblioteca humana” tem propiciado uma série de encontros em que os participantes lêem outras pessoas, e não livros. A partir da história de suas vidas, dialogam sobre a situação de grupos sociais vulnerabilizados — como minorias étnicas e pessoas LGBTQIA+ — e reforçam laços de convivência, fortalecendo a integração social.

Da mesma forma que já vi ocorrer por diversas vezes na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, as bibliotecas no Chile eram procuradas por pessoas em situação de rua para abrigo contra chuva ou em situações de violência, assim como para o uso da energia elétrica e de banheiros. A partir desse diagnóstico, criaram um programa específico para essa população, oferecendo iniciativas de capacitação, alfabetização, apoio psicossocial, dentre outros serviços.

Na Rússia, uma série de reformas e adaptações possibilitou que diversas bibliotecas do país passassem a ser espaços de discussão de problemas relacionados ao desenvolvimento comunitário local.

A invenção das cidades e da palavra escrita revolucionaram a humanidade, havendo uma forte relação entre ambas. Cuidar de nossas bibliotecas e compreendê-las dentro do conjunto urbano é, portanto, um passo fundamental para alcançarmos o exercício pleno do direito à cidade. Lembrando a lição de Paulo Freire, que teria completado 100 anos neste mês, a leitura da palavra não pode prescindir da leitura do mundo e a educação não pode prescindir da ação política. O direito à cidade perpassa fundamentalmente pela experiência literária e pelos encontros culturais e sociais propiciados pelas bibliotecas públicas, e estas não são ilhas isoladas do restante da cidade.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.