Bemdito

Onde as havaianas não te permitem ir?

O lado perverso e excludente da relação entre moda e cidade
POR Rodrigo Iacovini


O Twitter é um oceano revolto de polêmicas e tretas, como classificado por vários de seus usuários. Muitas dessas polêmicas são frequentemente requentadas, havendo ciclos de discussões já discutidas, de polêmicas já polemizadas, de tretas já tretadas. A disputa bairrista entre cidades é uma delas, em que enaltecemos ou desprezamos a nossa própria cidade ou outras em que nos encontramos. Uma dessas capturou minha atenção nessas últimas horas: em que cidades é aceitável transitar de chinelo, bermuda e regata por espaços públicos, semi-públicos ou “privados disfarçados de públicos”, como shopping centers?

Começou como a maioria das polêmicas nascem naquela rede, pelo relato casual e despretensioso de um usuário que notou um tratamento diferente em algumas circunstâncias em São Paulo pelo fato de estar vestido “como saio no Rio, isto é, havaianas, bermuda de taktel e minha camiseta vermelha do Crucificados pelo Sistema do Ratos de Porão”. Como ele, outros usuários comentaram que realmente sentem diferenças entre as possibilidades de uso das havaianas e de outras peças mais descontraídas do guarda-roupa, como shortinhos, camisetas de times de futebol, dentre outros, e que já teriam passado também por situações discriminatórias em função disso.

Diversos outros comentaristas de plantão alertaram que não era bem assim, pois suas vivências demonstravam ser possível e, até mesmo, comum transitar por São Paulo vestido dessa maneira. Em alguns desses relatos, era possível perceber uma tentativa de defesa da cidade, como se a observação que originou a discussão estivesse desmerecendo a cidade. Em tweets posteriores, o rapaz sentiu até mesmo a necessidade de reafirmar o quanto gosta de São Paulo e que não havia dito que a cidade “era assim”, mas que o fato simplesmente havia ocorrido.

De fato, em nenhum momento o seu comentário aparenta querer sintetizar ou resumir a experiência urbana em São Paulo a partir da sua vivência, desse único acontecimento. Como em tantas outras tretas do site, os usuários comumente lêem muito mais do que o que realmente se encontra escrito. É contraproducente, inclusive, qualquer tentativa de essencializar uma cidade ou mesmo de avaliá-la como pior ou melhor segundo um único critério. Afinal, num ranking baseado na possibilidade de uso de havaianas, tendo Rio de Janeiro e São Paulo como pólos, você conseguiria determinar onde se situa a sua cidade?

Existem, claro, diferenças entre as cidades e o costume local relativo ao vestuário. Os leitores mais atentos do Bemdito já podem ter percebido que eu mesmo sou um cidadão de duas cidades: São Paulo e Fortaleza. Nasci na primeira e morei 10 anos na segunda, onde fiz ensino médio e faculdade e comecei minha militância pelo direito à cidade. Nas minhas idas e vindas entre elas, pude perceber e viver suas diferenças: jamais esquecerei como me senti surpreso ao saber que não poderia frequentar o colégio Geo Dunas de bermuda, o que até então era normal no meu colégio de São Paulo. Por outro lado, quando voltei à capital paulista, achei todo mundo muito cinza e preto na forma de vestir. Sentia constantemente que estava de penetra num velório de um defunto desconhecido. Apesar dessas diferenças, não acredito que possa dizer que São Paulo é mais progressista com base na permissão de bermuda em colégios e que Fortaleza é uma cidade mais animada pelas cores vivas das roupas de seus habitantes. Percepções individuais não são dados científicos.

A polêmica, no entanto, se torna interessante quando alguns dos comentários apontam que não necessariamente se trata apenas de “o que” a pessoa está vestindo, mas “onde” está circulando com aquele traje. Quando nos referimos somente a “São Paulo”, estamos colocando em um mesmo pacote uma miríade de distintos territórios e dinâmicas sociais, como observou uma usuária em seu tweet “(…) fiquei pensando “que São Paulo é essa que o povo tá vivendo?”. Aqui na quebrada havaianas + camisa de time/camisa de escola de samba/camisa polo falsa = todo dia. Mas em bairro de gente que acha ser rico, realmente não tem”.

Não tenho a intenção de fazer uma digressão sobre a costura profunda que une moda, classe e identidade, mas há estudos interessantes como a dissertação de Larissa Leal Moura, que resgate a trajetória da Moda e suscita reflexões sobre seu uso como forma de expressão de identidades hoje; ou a de Carlos Scopinho, que discute uma sociologia da moda a partir do figurino da novela Avenida Brasil. Mesmo assim, é importante reafirmar que moda, classe e identidade se encontram entremeados no mesmo tecido em que são forjadas múltiplas territorialidades em nossas cidades.

A discriminação apontada por vários twiteiros ocorre, portanto, a partir de uma combinação de vestimenta e territorialidade. Enquanto a vestimenta denotaria a classe à qual você pertence, o território te recebe ou rejeita de acordo com essa classe. Alguns espaços da cidade são reservados a determinadas classes, sendo comum a hostilidade ostensiva àqueles que ousam furar as fronteiras invisíveis – mas palpáveis – que demarcam esses territórios.

Outros marcadores sociais também entram em jogo no processo de segregação e discriminação. Ao responder àqueles que diziam ser possível circular tranquilamente por São Paulo de havaianas – já que haveria até mesmo uma loja das Havaianas na Oscar Freire, rua que concentra o comércio da moda de luxo -, uma usuária ressalva: sim, desde que você seja branco. Há, portanto, um forte viés racial também nesse processo de discriminação e exclusão territorial.

De maneira ainda mais contundente, outro tweet sentencia “Usar Havaianas aqui já te tira do espectro da legalidade”. Muito além de havaianas e das polêmicas que movem o Twitter, a frase sintetiza a violência encerrada pela exclusão territorial de classe, raça e gênero que vivemos nas cidades brasileiras. É triste e, acima de tudo, perverso.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.