Uma democracia em transição constante
Em coautoria com Rafael Minatogawa*
Com o retorno dos trabalhos na Câmara dos Deputados após recesso parlamentar, é alta a expectativa de que tenhamos a votação do relatório da deputada Renata Abreu na Comissão Especial formada para dar parecer à PEC 125/2011, a reforma do sistema eleitoral.
É bem verdade que a proposta da relatora traz alterações no texto constitucional que não necessariamente tratam do sistema eleitoral, como a mudança da data da posse presidencial, o adiamento de eleições próximas a feriados e novas regras para divisão do fundo partidário com o intuito de estimular um aumento de candidaturas femininas. Mas não serão essas as mudanças que trataremos aqui.
A principal alteração constitucional que teríamos com a aprovação da proposta seria a mudança no nosso sistema eleitoral. Abandonaríamos o sistema proporcional de lista aberta para eleição de deputados federais e estaduais, passando a ser um sistema “distrital misto”.
Antes de seguirmos com nossa análise, é importante fazermos algumas distinções em relação a esses dois sistemas.
O “proporcional de lista aberta”, como todo sistema proporcional, traz o benefício de garantir a presença de minorias nos nossos parlamentos, assim como garantir uma representação ideológica mais fidedigna da sociedade. Entretanto, ele também é apontado como um dos principais motivos para a existência do alto número de partidos com representação na Câmara, o que dificulta muito a governabilidade.
Ao contrário dos sistemas proporcionais, sistemas majoritários, como o distrital, tendem a gerar uma maior governabilidade e diminuir o custo das campanhas, dado que você reduz o número de eleitores que precisa atingir. Entretanto, não conta com os benefícios que citamos em relação aos sistemas proporcionais.
A ideia do distrital misto, ou sistema paralelo, é justamente ter o “melhor dos dois mundos”, no qual teríamos metade da Câmara eleita por um sistema proporcional e a outra metade eleita através de um sistema majoritário em distritos uninominais (cada distrito elege um deputado).
Bom, então estamos caminhando no sentido correto, certo? Corrigindo esse grande problema de governabilidade que temos desde que teve início a nova República; mantendo a representação de minorias no parlamento; seguindo o rumo de países com democracias consolidadas…
Quase!
Pedágio eleitoral
Infelizmente, em seu substitutivo, a relatora impôs um modelo de transição, uma espécie de “pedágio eleitoral”. Para que chegássemos nesse novo modelo em 2026, teríamos que adotar um outro modelo em 2022, o chamado “distritão”. Tal modelo é provavelmente o mais simples de ser compreendido dentre os sistemas eleitorais, mas esse é talvez seu único benefício.
No “distritão”, os mais votados de cada estado são eleitos, independentemente de partido ou região. O problema é que, apesar de ser um sistema majoritário, ele não reduz o acesso de múltiplos partidos à Câmara, mantendo o problema da falta de governabilidade; não cria um retrato fidedigno da sociedade no parlamento, permitindo distorções causadas por candidatos com muitos votos; encarece o valor das campanhas, já que mantém o alto número de eleitores que precisam ser atingidos sem permitir uma campanha compartilhada entre diferentes candidatos de uma mesma chapa. Em suma, o pior dos dois mundos.
O Japão constatou todos esses problemas e abandonou tal sistema no início da década de 90, mas ele segue em pelo menos uma democracia do mundo: a gloriosa ilha de Vanuatu! Sim, estaríamos adotando o sistema utilizado em uma ilha com a população menor do que a minha querida Piracicaba. E tudo isso sob o pretexto de que estamos muito próximos da eleição de 2022 para já adotarmos o distrital misto. Ora, que se mantenha o proporcional para 22, então! No Brasil, não há nada mais permanente do que uma política temporária.
Adotar o “distritão” no ano que vem, como fase de transição, pode ser um grande cavalo de Troia.
Para além do imbróglio técnico que garante que o sistema eleitoral fique ainda mais confuso, há uma triste constatação sobre a nossa democracia: sua instabilidade. As propostas para mudança na forma de eleição têm ocorrido praticamente a cada legislatura. Desde as que influem diretamente na contagem, como o distritão, às propostas que lidam com os fundos públicos que serão revertidos à campanha eleitoral.
Não é diretamente ligado ao sistema eleitoral, mas a era digital adicionou ao caldeirão as discussões sobre o uso de notícias falsas no contexto eleitoral. O uso de mentiras em propagandas – ou em outras formas de denegrir o opositor ad homine – é tão antigo quanto a própria política. Um exemplo logo antes do boom das redes sociais foi a propaganda eleitoral da então candidata Dilma Rousseff, ligando a independência do Banco Central à falta de comida na mesa dos brasileiros. Bom exemplo de fake news , ou só de falta de conhecimento sobre o que o Banco Central faz.
Para os defensores de tantas mudanças, é um ajustamento da democracia. Mas, se observarmos a história, talvez seja um reflexo do imediatismo brasileiro aplicado a todos os setores. Mudanças nas regras desse jogo, especificamente, necessitam de tempo para fazer efeito. Proclamar que a mudança não deu certo e já querer mudar as regras no pleito seguinte, ou pior, utilizar desses instrumentos para impedir a renovação nos quadros parlamentares não faz sentido, tendo em vista que são complexas demais para um efeito imediato.
O parlamento brasileiro é criticado pelo fisiologismo, e o Centrão, essa figura fluida e onipresente – e talvez onipotente – tem sido cada vez mais questionada. Em projetos como o abordado aqui, a possibilidade de amadurecimento da democracia e do parlamento, e a chance de ver os resultados para poder corrigir distorções se perdem e beneficiam quem sempre está presente e dita as regras.
Se o povo soberano exerce o poder por seus representantes, precisa ser avisado que as regras mudam rápido demais para que qualquer um acompanhe.
*Rafael Minatogawa é economista pela Unesp e atua como chefe de gabinete de Kim Kataguiri (DEM) na Câmara dos Deputados