Bemdito

Nascedouro: história de vir ao mundo

Parir a vida em meio aos doentes da pandemia não era propriamente seu sonho, mas Camila viu em Ravi um novo país a habitar
POR Ana Eduarda Diehl

Cinco mulheres grávidas conversavam sobre gravidez. Todas recobertas em suas mantas xadrez, à espera do parto. Uma delas disse à mais nova que seria como fazer um cocô muito duro e depois ser inundada por dentro.

Camila não queria ali estar, pois havia sonhado parir à luz de velas e bombas de ocitocina, enquanto a mulher estritiaguda contava da vergonha de comunicar a gravidez ao chefe, passados dois meses da admissão.

Na mesma sala, uma outra chegou sozinha de um aborto tardio e foi parar junto das futuras mães, que, embebidas da alegria de fazer filhos, não tinham qualquer sensibilidade com a dor alheia. Entre elas, havia uma linguagem secreta comum, exclusiva ao domínio materno, proibindo o choro incontido daquela que não foi,
ignorando o destrutivo rompimento de uma mulher grávida que não seria mãe, destituída da outra parte de si, insuportavelmente só.

A parte do mundo Camila andava imersa numa espécie de conforto entre a aceitação e o amargo, evitando se distrair com excessos e faltas que não fossem suas, que já eram tantas nos últimos dias.

Parir a vida em meio aos doentes não era propriamente seu sonho. Não houve fenda mítica, senão faca de corte entre o que era e o que viria a ser.

Ela havia sido presenteada pelo acaso de ser uma mulher pequena carregando uma criança enorme e um cisto que não parava de crescer, como se a vida andasse a ameaçar a si própria ao tardar em seu ponto, 

pois além de tudo os dias eram frios e o bebê se adormeceu, hibernando na quentura do caldo amniótico. Ali poderia ficar pra sempre, evitando o rasgo que lhe traria para o começo do fim,

**pois a infância é eterna, as crianças é que são mortais.**

Foi preciso a faca. Uma cesárea emergencial condizente com o tempo das máquinas e algum controle de risco.

Abortos, velhos putrefatos, uma pandemia em seu país e tudo aquilo que nos corredores era tão demais e tanto. Camila optou por concentrar-se na passagem estreita

submeteu-se ao que era possível,

dentro de todos os limites da única possibilidade de vir a ser.

Que fosse: rogaria a todos santos que lhe ensinou sua mãe. Ela nunca prestou devoção até parir, quando se teve com uma fé muito maior, sob o risco de quatro mãos e duas facas apontadas para o ventre.

O menino nasceu parrudo, olhos azuis, bochechas enormes, e os lábios de rosa, fruto dos traçados de uma geografia materna.

O pediatra saudou o pai pela criança que vinha ao mundo. A médica disse que sua vinda era um milagre, pois todas as condições eram desfavoráveis com exceção da vontade de que a vida fosse possível.

Camila foi o primeiro país de Ravi, que fez de Camila uma estrangeira, pois agora teria de orientar por mapas outros, escrutinar a novidade das madrugadas acesas.

Justo ela, que sempre exerceu o controle de dormir cedo demais.

Ana Eduarda Diehl

Ana Eduarda Diehl é uma espécie de antropoeta. Curitibana, é mestranda e desenvolve projetos culturais na intersecção entre memória, escuta e escrita.