Bemdito

A novelesca CPI da Pandemia

Mistura de House of Cards e Game of Thrones, CPI é um entretenimento urgente
POR Cláudio Sena
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Em períodos de pandemia, perdas e agravamento da desigualdade social, como se não bastasse, encontramos entretenimento numa Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid-19. A bem da verdade, é mais que entretenimento, talvez seja um certo desejo de vingança, de justiça e de mudança diante de um absurdo normalizado. Mas a transmissão da TV Senado ao vivo não deixa de ser novelesca. Perceba.

Há personagens que temos asco, enquanto reservamos carinho maternal a uns poucos. Cada qual mais caricato e cartunizado que o outro, mesmo sem boca e nariz para evidenciar traços da fisionomia dos parlamentares e depoentes. Vícios de linguagem, ironias educadas, grosserias e um bocado de gestos carimbam homens e mulheres naquela sala do Senado. Um de testa oleosa, uma “exausta”, um com careca lustrada, um com as ventas que teimam em escapar da máscara, uma que fala baixo parecendo esconder o perigo, um com plaquinha de passagem bíblica, um com óculos que embaçam a todo momento. 

Nesse emaranhado de gente vestida entre esporte fino e passeio completo, tem o cabo da Polícia Militar, que também é executivo representante de multinacional, a médica cientista a favor do tratamento precoce e contra isolamento social, o professor de inglês bilionário que dá pitaco no governo federal e passeia garboso pelos ministérios, o general que faz gestão (ou falta dela) de comércio de oxigênio. Olhe, um quadro de personagens de fazer inveja a Dias Gomes, Janete Clair e Agnaldo Silva. 

E eles e elas falam. Tome “questão de ordem” e demais oratórias. “Só um minutinho”; “Isso é o que o senhor acha”; “Deixa a testemunha falar”; “Vidas poderiam ter sido salvas” repetem-se, geralmente de terça à quinta, com aparições eventuais nas sextas e segundas. Neste aspecto, talvez diferenciem-se da novela televisiva que guarda os melhores capítulos, muitas vezes, para os sábados. 

Nesse embolado de gente, os núcleos mais ou menos estáveis desenham-se: G7, governistas, resquícios do centrão, os em cima do muro caído, os que não sabem bem o que estão fazendo ali. Cabe ao espectador escolher seu grupo, decisão relativamente fácil, pelo menos para mim e para a minha bolha revoltada e cansada, por motivos óbvios. Coloco o “relativamente” na oração anterior porque a gente se pega torcendo para uns e outros que, noutras circunstâncias, estariam em lados opostos dos nossos. Fazer o quê? Olha o tamanho do nosso adversário e o olha o grau do estrago. Trinca os dentes e vai, vamos. Isolados, mas conectados em linhas de pensamento. 

O esperado daqueles que assistem a tudo isso é a torcida. Aumenta-se o volume do dispositivo eletrônico durante o pronunciamento do preferido, muta-se enquanto fala aquele que mente, nos chateia ou insiste em falar besteira. Conversa-se com a TV, computador ou telefone e, na percepção de que não há interlocutor ativo, tome rede social para expressar o que se sente. Em último recurso, envia-se mensagem ao @ que está na sessão. 

As tramas e os conflitos, aspectos naturais em todas as novelas, também são dos mais variados, embora todos com o final trágico que percebemos nos números da pandemia. Cito alguns dos nós em vias de serem desatados: Ministério paralelo, reuniões obscuras para compras de imunizantes, depoente “cavalo de Troia” implantado, cidade laboratório para imunidade de rebanho. Ao que parece, todas essas micro histórias têm vilões, em alguns casos estes se repetem. Adicione a isso mensagens de áudio e gravações de vídeo, impressões de WhatsApp. Vale tudo para criar o clímax desejado e comprovar as hipóteses que se anunciam. Uma mistura de House of Cards e Game of Thrones com as armas que há em mãos naqueles momentos. 

Confesso que substituí os jogos da Copa América pela TV Senado e as repercussões da CPI. Não garanto que irei fazer disso uma praxe daqui em diante, mas tenho a impressão de que foi a decisão adequada e de que não fui o único. Considerando o que estamos vivendo, parece o certo a se fazer. Um entretenimento urgente.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.