Luisa Sonza mostra semelhança com Clarice Lispector. Como isso aconteceu?
Era bem pequena e passeava entre a gigantesca estante de livros da casa dos meus pais, onde via com frequência o nome de uma tal de Clarice. Tinha tanto livro dela ali e, a cada aniversário ou data comemorativa, minha mãe ganhava mais. Adolesci e comecei a me aventurar por eles, para alegria e também tristeza de Mainha, já que pouca coisa na vida ela tinha mais ciúme do que aqueles livros.
Veja bem, cheguei a levar edições para um carnaval em Aracati. Entre um gole de cerveja e um passo de axé, passeava pelas páginas de “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”. Sabe-se lá quem explica essa escolha.
E isso tudo poderia ser só mais um texto de adoração à autora de “A hora é da estrela”, mas na real é que a inserção de Clarice no mundo pop foi além das frases erroneamente referenciadas à ela e entrou para a música com Luisa Sonza. E gosto de Luisa, assim como gosto de Clarice.
Na Lyric Video da música Penhasco, Luisa surge se preparando para uma entrevista enquanto fuma um cigarro e contempla com um olhar distante o vazio. Ao fim, engole todas as próprias angústias e sorri para as câmeras agradecendo “todo o carinho que recebe”. Para quem não acompanha tanto a história da cantora, Luisa recebe ataques de haters desde o início de sua trajetória profissional. O agradecimento é, portanto, ironia fina. Como Clarice.
Olhares atentos notaram a semelhança na postura de Luisa no vídeo com a de Clarice na última entrevista concedida pela escritora antes de morrer. Foi ao programa Panorama, da TV Cultura, em que a escritora responde às perguntas também fumando um cigarro e solta frases icônicas como “eu acho que, quando não escrevo, estou morta” ou “o adulto é triste e solitário”.
Durante toda a entrevista, Clarice passeia pela percepção de sua trajetória e relata os rótulos que já recebeu, como o fato de se considerar “tímida e ousada ao mesmo tempo”, e relembra a adolescente “intensa e caótica” que foi e o fato de tudo o que ela diz, mesmo “a maior bobagem, é considerada como uma coisa linda ou uma coisa boba”. Nada passava despercebido e tudo era julgado. Dá para entender Luisa se vendo nessas palavras.
Sendo uma jovem de 22 anos, com suas dores e delícias, com suas inconstâncias e seu amadurecimento, com suas descobertas e decepções, Luisa não encontra espaço para respirar e apenas absorver a sua própria história. É, constantemente, bombardeada pela crítica, opinião e, claro, pelo machismo. Ela só queria cantar. Clarice só queria escrever.
O olhar distante, o tédio latente, a perceptiva vontade de não estar ali, a profunda angústia, toda a encenação de Luisa conversa com a postura de Clarice. Há algo que as une, mesmo sendo figuras de espaços-tempo tão, tão distintos. É que existe, entre mulheres, esse encontro partilhado nas dores.
Mesmo o mais crítico do estilo de música de figuras como Luisa não tem como negar o quanto a cantora sofre somente por ser quem é. E de como, em tantas etapas da vida, precisou fingir ser outra para ocupar um espaço ou ainda ser ouvida. Tal qual Clarice, quando era Helen Palmer, Tereza Quadros ou Ilka Soares, ao escrever linhas que não acreditava, em jornais para os quais precisou colaborar como profissional. Precisamos ser tantas em uma só para conseguirmos ocupar nossos espaços, há tantos anos.
Se há um tanto de Clarice em todas nós, ela também está em Luisa. E há mais o que une mulheres de mundos ditos opostos do que o que as separa.