Como construir um revólver e fazê-lo disparar
Reencontrei Rosa quase por acaso, quase porque desejava muito encontrá-la, mas não esperava que acontecesse, não daquele jeito. Era um café pequeno, no centro, frequentado por gente local, uma casa de fachada antiga e tijolos aparentes, do lado de fora, dois canteiros de plantas meio abandonados e algumas mesas, todas vazias. Um fio de luz deslizou pela manga da minha camiseta até alcançar o chão, a tarde ia quente, o suor formava uma ardida mistura com a colônia no pescoço, eu precisava de uma pausa, comer alguma coisa, retomar o trabalho.
Ela pegou minha mão ao me ver passar pelo corredor, tomara um café, a xícara largada no meio da mesa, envolta por guardanapos amassados. Exalava um odor adocicado de álcool, embora nada além disso denunciasse que havia bebido, me olhou com interesse, mas logo se perdeu em seus pensamentos como se não se interessasse mais.
— Pedro! Você também tá sozinho? Senta comigo. Faz tanto tempo.
Ela não sorriu ao me ver puxar a cadeira e afastá-la pra longe da mesa, pra centímetros mais perto dela, um movimento rápido, que torci que fosse imperceptível, mas foi suficiente pra fazer reclamar a cerâmica do piso e chamar a atenção das pessoas que estavam ao redor, como se a tentativa de me aproximar fosse digna de interesse geral, o interesse de uma plateia que esperava pelo ridículo da minha falha, mas eu sabia que não era, sabia que isso apenas eu imaginava e que a atenção depreendida não passava de um reflexo pela perturbação do ambiente. Rosa me olhou com uma expressão de atenção e impaciência, o seu sorriso havia ficado pra trás, e nada volta, certas coisas não voltam. Não era assim que eu imaginava, encontrá-la por acidente, pelo mesmo acaso que tanto se exibiu pra mim ao trazer sua lembrança na forma de uma música no rádio do carro, ou um cupom fiscal de padaria esquecido dentro de um livro e tantas outras tralhas românticas que se acumularam no curso do último ano. É claro, teria sido melhor que a força de nossa própria vontade houvesse articulado o encontro, que nós pudéssemos ter, finalmente, concordado em nos ver, mas o mundo sempre impõe seu movimento, e acredito que assim o faz porque segue adiante, mesmo quando não estamos prontos pra seguir adiante.
— Você perdeu peso. E parece que tá fumando, agora, não está?
Lembrei de quando gostava de me deitar de costas no chão e sentir nos dedos de minha babá o cheiro morno do cigarro. Isso me ligava ao mundo como um elo entre ele e os meus sentidos, na época eu era muito criança pra pensar desse modo, mas hoje vejo que o pensamento se cristalizou assim e que, ainda então, de alguma forma, eu sabia disso, sabia que naqueles momentos eu não era um fantasma, que era percebido por ela e que recuperara, mesmo rapidamente, a corporeidade perdida. Seria essa a minha resposta pra Rosa se tudo fosse como antes, eu diria que desde que partiu, o cheiro do cigarro me acalma, diria, talvez, que ele me situa também, e ela riria pelo emprego inesperado do verbo, mas entenderia, sei que entenderia e lhe seria natural compreender.
— Ele fuma também, não é? Eu vi numa foto de vocês dois.
Ela rolou os olhos como se desenrolasse uma velha atadura, dolorosamente. Ao invés da conta, como imaginava, pediu mais um café e uma água com gás, e eu um sanduíche. Ela colheu uma pedra de gelo do copo com a língua e trincou nos dentes.
— Eu sempre gostei do seu jeito de me olhar, é diferente, sabe? Como se a tristeza não fosse uma parte obscura da vida da gente, que a gente tem que esconder. Mas, agora não faz sentido, Pedro. Eu bani essa parte da minha vida.
— Qual parte, a tristeza?
— É. Não penso mais sobre essas coisas.
— Puxa, eu devo me alegrar, então, porque nós dois sempre fomos um espelho tão terrível um pro outro.
— Um espelho?
— Sim, quando estávamos juntos, nós…
— Pedro, você conhece os meus problemas, e se já não os conhece mais, sabe a forma como lido com eles. Isso deve bastar pra saber como estou, não?
Eu já estivera ali diante de Rosa, não exatamente ali, mas numa mesa consternada exatamente como aquela, no entanto, parecia que estava com ela pela primeira vez, parecia que ela detinha poderes de que não dispunha nas outras ocasiões, os poderes que apenas o tempo e a distância podem conferir, como a impetuosidade pra falar de uma vez o que se pensa, porque o que ela pensa agora existe de uma forma autônoma em relação ao que penso, somos independentes um do outro, peças de quebra-cabeça que se extraviaram e se conformaram com outras peças, que não se encaixam quando se tocam, sequer tentam se encaixar.
Fazia um calor imenso, um homem entrou sozinho no café, puxava a camisa pra abanar o peito, desabou numa cadeira logo atrás, em péssima forma. Eu o observei por cima do ombro dela e soube, não importava o que restasse pra ser enfrentado naquela tarde, ele não conseguiria de forma alguma, sem chance.
— Eu vi a sua nova peça, Rosa. Na semana de estreia, 6 meses atrás. Aquela garota triste, Cláudia, que atuação maravilhosa na cena do baleeiro em Açores, o monólogo sobre acreditar tão firmemente ser uma fantasma durante boa parte da infância, uma fantasma com quem os pais se comunicavam e tentavam por pena fazê-la acreditar que era uma menina viva de verdade, e nossa, como aquela história, à medida que se desenrolava, se parecia cada vez mais com a minha, mas também tão diferente, até o momento em que surgiu no mar aquele imenso rabo de baleia, só pra ela, uma criatura que apenas pra ser vista, arriscou se exibir pro caçador. Como você, Rosa, como você me olhando atrás daquela cortina, um encontro que poderia ter ocorrido muito em qualquer lugar do mundo, mas que aconteceu com a gente… Eu só consigo pensar se vocês dois fariam mesmo isso, fariam? Distorcer tudo daquela forma cruel. Eu não acredito que seja mesmo sobre isso que falam, que usam as histórias das pessoas que passaram por suas vidas primeiro como entretenimento próprio, pra jogar conversa fora, e depois pra lotar um teatro, ganhar dinheiro, tapinhas nas costas, masturbação intelectual, artigos de revista, é isso, é tão sacana assim?
— Bem, essas sensações de empatia, isso é só o teatro. E o meu texto é um bom texto, e ele é um ótimo diretor. É por isso que está bravo, não é? Porque realizei algo com outra pessoa, por isso que você deseja ser o protagonista da minha vida mesmo quando já não faz mais parte dela, Pedro, por isso que meu trabalho precisa ser sobre você. Jesus Cristo, é inacreditável, você só tá com ciúmes.
— Eu não sou o protagonista nem da minha própria vida, Rosa.
— E é exatamente esse o problema. Como sempre, você está fascinado com a ideia de isolamento, mas com essa fantasia sempre ligada à presença de alguém te esperando. Alguém que sabe que você está sozinho, uma espectadora dessa solidão artificial. É isso que faz um fantasma ser um fantasma, Pedro, ele é visto, mesmo não estando presente. Por isso que minha história jamais será a sua história, pelo rabo de baleia avistado pela protagonista. Cláudia deixa de ser apenas observada e realmente a vê, e então entende.
O sanduíche jazia à minha frente como a droga de uma ode à falta de apetite. Eu não podia, não conseguia morder mais nada.
— Você roubou a minha vida de mim, Rosa. Você revelou o meu trauma mais profundo pra uma plateia de desconhecidos e agora tem coragem de dizer que isso é apenas teatro.
— Não. Eu vou dizer que isso é apenas a vida. E algumas vezes na vida, se relacionar com alguém é como ensinar a disparar um revólver.
— Você não pode esperar que eu ache isso justo.
— Por favor, não me fale de justiça, muito menos de esperar. Eu esperei muito mais do que qualquer um.
De repente, eu a vi de novo como na primeira vez, me olhando chorar aquelas lágrimas idiotas na plateia. Ela escondia parte do rosto com a cortina, na coxia do palco, eu a olhei de volta como se soubesse que estava sendo observado e pude intuir que sorria. Nossos olhares colidiram como sondas perdidas na malha do infinito espaço-tempo. Ela era uma jovem autora, e eu não poderia me importar menos com o teatro, até aquele momento. Quais mínimas eram as chances de acontecer um encontro dessa magnitude por qualquer outra coisa que não seja um grande plano e um convite a nossa participação nele? Eu acreditei nesse pensamento com tamanha violência que, até agora, quando sua falsidade é mais do que evidente, me pego recusando a desacreditar.
— Se lembra, Pedro, daquela vez em que escrevi que certas espécies marítimas parecem possuir chaves líquidas capazes de abrir quaisquer fechaduras? A imagem ficou na minha cabeça e desde então eu a tenho repetido como uma oração pra voltar ao momento em que ela surgiu, como por coincidência. Você sabe, pra mim o acaso é só um jeito de o universo demonstrar seu desejo de que o mundo dê merda. Mas eu te conheci e você me contou a sua história de se sentir como um fantasma e ela de algum modo se misturou à minha, ao meu rabo de baleia, e agora, no palco, ela pertence a todo mundo e a ninguém. Se isso é mais um recado do universo, eu não ligo. Você me conhece, eu prefiro andar às cegas do que não andar de jeito nenhum. É por isso que eu andei, Pedro, e por isso você deve andar também.
Pela primeira vez, não ignorei que estava sendo um pouco injusto, mas sei que tal consciência se devia primeiro ao fato de me dar conta de que em uma conversa entre homem e mulher podemos muito rapidamente passar do papel de anjo acusador ao de um bobo estraga-prazeres, e foi esse cinismo que me trouxe de volta à superfície, não uma súbita compreensão de que eu estava, mesmo, sendo um bobo, mas o receio de ser visto como um.
— É um ótimo texto, mesmo, Rosa. E ele é um grande diretor.
— Obrigada. Você não vai comer?
Peguei o sanduíche com as duas mãos, o queijo derretido resfriado debochava de mim como uma língua gordurosa entre as fatias de pão prensado. Atrás de Rosa, o homem que entrara sem fôlego se levantou, respirou fundo, penteou os cabelos com a mão e sustentou no rosto uma expressão confiante que durou apenas por um segundo, mas que pareceu movê-lo, foi como avistar um rabo de baleia surgir na superfície do café, eu dei uma mordida maciça, com todos os dentes, e me senti muito bem, então percebi que Rosa me olhava de uma maneira que não sei explicar, mas que finalmente, sorria.