Cine Memória
Em maio de 2004, em alguma tarde de sábado cuja data já foi esquecida, eu tinha 20 anos e estava correndo entre os dois únicos cinemas da minha cidade, no interior do Espírito Santo, para assistir a dois filmes no mesmo dia. Meu amigo escolheu o primeiro, sessão de 14:30: não tenho mais certeza de qual era, sempre que tento me recordar dessa primeira parada do dia fico em dúvida entre dois filmes. O segundo, sessão das 17:15, ninguém escolheu – foi um erro de cálculo.
O filme de Hollywood que queríamos ver era mais cedo e já tinha começado quando chegamos correndo ao segundo cinema, nós tínhamos confundido os horários. Hoje, 17 anos depois, percebo que os filmes escolhidos e, aparentemente, tomados como as estrelas de toda aquela empreitada, eram, na verdade, coadjuvantes talentosos para algo que permanecia não dito no roteiro dos meus dias. Implícito, sim, mas vividamente presente: a presença por trás das conversas e que moldava e escolhia as palavras, o impulso que moveu nossas pernas enquanto cruzávamos a cidade, a vontade que não mirava só nas pequenas e mal planejadas salas daqueles dois cinemas.
Em um deles, as poltronas eram confortáveis, mas o som era ruim. No outro, a sala era mais espaçosa, mas os banheiros ficavam do lado de fora do cinema. A experiência era sempre por um triz, sempre incompleta, mas, apesar e por causa disso, era sempre, também, quase perfeita. Agora, tantos anos depois, eu me sento e recordo do dia quando, por acaso, escolhi um filme e assisti outro, tudo porque eu não queria voltar para casa, aquela noite, sem carregar comigo a história de uma tarde de sábado, quando éramos jovens, e cruzamos a cidade correndo para assistir a dois filmes no mesmo dia.
Na inconsciente vontade de fazer dos filmes, das salas de cinema, das ruas da minha cidade e daquela tarde de sábado de maio de 2004 – transformar todos eles, aquela realidade, a minha realidade – em personagens da minha história, em moradores da minha memória do cinema e de cinema. Foi minha vontade de criar essas lembranças que me colocou na sessão de 17:15, no Viva Cinema, para assistir ao filme Diários de Motocicleta e é sempre desse dia e desse filme que me lembro quando reafirmo o cinema como um meio, como algumas das cenas mais finas e mais bem montadas do filme perene e lisonjeiro que tento rodar com meus próprios olhos e com minha própria ininterrupta construção de memórias.
Na penúltima semana do clube do filme, comecei a olhar para as imagens que passavam na minha frente e, ao mesmo tempo, a percorrer com o fundo da íris a rememoração de todos os filmes que assistimos desde abril de 2020 e antes de começarmos com nossos encontros. Era como se eu quisesse encontrar algum ponto no fundo da tela, por trás das cenas, antes das cenas, antes de começarmos a assistir àqueles filmes, antes deles serem escolhidos, antes deles entrarem na nossa história.
Quando um filme – aquele filme -, entre tantas possibilidades, se torna relevante para nós? Em que momento ele começa a ser escolhido? Desde os desenhos rupestres, gravados nas pedras e cavernas – as primeiras telas da nossa trajetória – passando pelas grandes obras de arte, até o nascimento do cinema, as telas de cada tempo sempre serviram de lugar de expressão, inspiração, troca e registro histórico: e era essa a minha sensação, depois de todas aquelas semanas feitas de imagens; é quando vemos refletidas fora de nós as nossas rudimentares, confusas, psicodélicas e poéticas histórias/memórias que elas ganham a proporção e a sensibilidade do que realmente são.
É quando compartilhamos, é quando permitimos que elas se entrelacem e se misturem tanto com as visões pessoais de outros, quanto com nossos próprios dias e escolhas e planos e desvios que elas ganham mais cor, mais nitidez, mais profundidade e mais sentido. É quando nos sentamos, todos juntos, dentro de uma caixa escura e olhamos, fixamente, para as imagens que dançam na tela – imagens cujos traços agora são feitos de luz – que nos entregamos à sensação um pouco ilusória, mas quase verdadeira de estarmos compartilhando um sonho lúcido.
Ao término de cada filme, quando as lâmpadas se acendem e esfregamos os olhos e esticamos as pernas, é quando acordamos e retomamos a vida. Talvez, fosse adequado e educado, ao final de cada sessão de cinema, olharmos para as pessoas sentadas nas cadeiras mais próximas e os saudarmos dizendo um sincero e delicado bom dia. Os mais ousados arriscando um bonito: obrigado por ter sonhado comigo.
Naquela penúltima semana do nosso clube, enquanto nossos encontros ainda eram a realidade, porém já muito mais feitos de lembranças do que de expectativas, conversamos sobre a história recente do nosso país, recordando, depois de assistir ao filme Democracia em Vertigem, o que estávamos fazendo, vivendo e sentindo em 2016, durante os meses que antecederam o golpe sofrido pela ex presidente Dilma Rousseff. Comentamos sobre a vida, a trajetória e o legado de Harvey Milk, emocionadas por termos acompanhado à sua cinebiografia, uma ode a um nome e uma luta que se uniram, como imagens sobrepostas, para formarem uma coisa só. Questionamos o pouco conhecimento que temos sobre as décadas e os séculos passados e escritos na América Latina – o plebiscito que decretou o fim da Ditadura de Pinochet no Chile, com o filme No.
E antes de todas essas histórias, ainda a lembrança de uma velha motocicleta que cortava as estradas empoeiradas dos Andes e de como, dia a após dia e filme após filme, ela me trouxe até aqui. E o jovem Ernesto que segurava as mãos dos trabalhadores pobres e sem nome que ele encontrou pelo caminho – rostos que compõem meu acervo pessoal sobre a exploração e a indignação. E ao levantar os olhos, por poucos instantes, as paredes de casa também viraram telas onde eu assistia, simultaneamente aos filmes e sincronicamente às nossas conversas, àquela viagem de dois amigos cortando a América do Sul, e àquela tarde que era minha e que serviu de prólogo para o passeio que mudou a vida e as escolhas do jovem Che e também as minhas.
Uma vez transformadas em memórias as cenas dos filmes e os instantes da minha vida formam uma só história que começa sempre antes e que se mistura e que nunca, realmente, termina porque a imagem da motocicleta barulhenta, agora, caminha sobre os móveis da casa – uma pequena tela translúcida sendo deslocada – como aquela cena de filme dentro de uma cena do filme Cinema Paradiso que se liberta da tela, passeia pelos muros para, finalmente, ganhar as ruas. Como o personagem que salta da tela para ser real em A Rosa Púrpura do Cairo. Como O Artista. Como As Horas. Como todos os filmes que começam, em nós, muito antes de ligarem o projetor e de nos ajeitarmos e nos derramarmos sobre as poltronas.
Assim como o dia que eu queria que fosse lembrado como “aquela tarde quando eu assisti dois filmes em dois cinemas” tudo começa com a nossa vontade – de criar, de repartir e de compartilhar os pequenos pedaços de que somos feitos – nossos próprios dias e histórias memoráveis. No filme que é a nossa própria vida, dirigimos as cenas e, quando dormimos, as lembranças se ajeitam e as memórias se mostram é assim que, semi despertos, sonhamos filme e é assim que, quase conscientes, acordamos cinema.