Bemdito

Um ano de quarentena

Após um ano de rotinas alteradas, a pandemia se agrava e recuamos ao isolamento rígido e suas incertezas
POR Juliana Diniz

Após um ano de rotinas alteradas, a pandemia se agrava e recuamos ao isolamento rígido e suas incertezas

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Foi em 19 de março de 2020 que Fortaleza, a cidade onde passo a maior parte dos dias, fechou.  É uma data fácil de ser lembrada no Ceará, o feriado de São José, o dia em que se espera chuva como anúncio de que o inverno será bom e não haverá seca. Não lembro se, no dia, choveu ou não, mas lembro claramente a sensação angustiante de incerteza por viver o que o governo passou a chamar de isolamento social rígido. Apenas os serviços essenciais poderiam funcionar, os deslocamentos de pessoas seriam, em tese, restritos, os espaços públicos, como a praia e o calçadão, não poderiam ser frequentados. As aulas foram suspensas na universidade e na escola das crianças e, de uma hora para outra, todo planejamento para os próximos meses foi por água abaixo.

Naquele momento, a pandemia era ainda uma experiência estranha, indefinida. Não se podia prever por quanto tempo as quarentenas pelo país e pelo mundo iriam durar nem avaliar o risco de adoecer e morrer. Na imprensa, o assuntou se tornou a pauta exclusiva das coberturas e passou a atrair a energia da política e da economia. As atividades culturais foram interrompidas, da ordem do que se pode prescindir. Ao lado de duas amigas e parceiras de trabalho, Raisa e Tainah, eu tinha acabado de participar da abertura de uma exposição que organizamos por meses e posso dizer que esse evento, no começo de março de 2020, foi a última comemoração festiva – e aglomerada – de que pude participar. 

Às pessoas foi pedido que esperassem, por um motivo justo, urgente. Todo o resto permaneceu em suspenso para que os hospitais pudessem trabalhar e salvar os doentes. De casa, desviamos o foco para as falas de epidemiologistas, microbiologistas, secretários de saúde, governadores, o presidente. Também para a descoberta de um novo tipo de relacionamento social – lives, videoconferências, recursos de comunicação remota que muitos não estavam habitados a usar ganharam alcance generalizado. Minha avó de quase noventa anos aprendeu a fazer chamadas de vídeo e eu, aos trinta e cinco, tive de aprender a dar aulas à distância. Resisti mais do que vovó à novidade dos meios.

O medo da morte era, até então, um sentimento incomum, pouco frequente, muito associado ao risco de que algo pudesse acontecer com meus filhos. Um sentimento distanciado, mais um instinto do que uma probabilidade que pudesse me causar uma angústia real. Aos poucos, foi se entranhando nos dias, passei a calcular cada decisão pelo risco potencial de me expor a uma possível infecção. Calcular algo pior: o risco de, estando doente, transmitir a alguém do entorno o vírus e ser, de algum modo, mesmo involuntariamente, responsável por seu adoecimento.

O medo, a incerteza, a desorganização das rotinas, tudo de novo que veio com a pandemia precisou ser administrado em meio a uma tentativa geral de normalização e estabilização. Normalização do que nunca tinha sido tentado – o trabalho, o ensino, o amor remoto – e estabilização do nosso humor – choveram lives sobre pensamento positivo, yoga, coach, lições-de-vida-de-quem-consegue-extrair-o-melhor-de-tudo. Um caminho injusto, em resumo.

Injusto porque não é razoável imaginar que tenhamos a capacidade, em meio à completa desorganização, de reestabelecer rotinas em outros espaços, quando a sociedade não trata com honestidade o impacto da desigualdade sobre nossas capacidades de vida. Como uma mulher com filhos pequenos pode trabalhar normalmente em home office com as crianças correndo pela casa, famintas, necessitando atenção? Como alguém que ganha o sustento na lida diária pode se permitir interromper tudo para fazer isolamento? As entranhas das hierarquias sociais ficaram expostas e não foi possível criar um ambiente para um debate público sério sobre a redução de danos para cada grupo social diretamente atingido pelo isolamento. Foi assim que alguns chegaram a esse aniversário de quarentena consideravelmente mais sofridos, cansados, no limite.

Ontem, quase um ano depois, o governador do Ceará determinou o retorno ao regime de isolamento social mais rígido. Como um moto-contínuo. Agora o que se impõe aqui dentro não é mais a incerteza, mas a exaustão, o desalento. Sinto vontade de protestar que não aguento mais, mas não faria sentido, porque não há alternativas. Por isso, está tudo bem se você não consegue ver nada de positivo em meio a essa bagunça toda, se seu humor está em frangalhos, se há momentos em que sua vontade é de gritar e sair correndo. Está tudo bem se você sentiu vontade de dizer um palavrão a todos os moralistas com comportamento policial que, pelas redes, saem monitorando o rigor dos protocolos sanitários alheios. Está tudo bem em sentir raiva.

Não sabemos se vai passar, ou quando. Por ora, o que de mais honesto podemos fazer é reconhecer nossas limitações individuais e coletivas. Focar nossos esforços em compreender o sofrimento do outro, trabalhar o luto, esmiuçar nossas responsabilidades políticas, afastar quem só atrapalha as políticas de saúde, pensar em alternativas para uma vida com mais empatia e senso de reciprocidade.

Redesenhar a vida, em resumo.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.