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Quem pagará o preço pela politização da pandemia?

Políticos que compraram tese negacionista como plataforma ideológica podem receber a conta em 2022
POR Monalisa Torres
Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados

Políticos que compraram tese negacionista como plataforma ideológica podem receber a conta em 2022

Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br

Há um ano confirmavam-se as primeiras mortes por Covid-19 no Brasil. Àquela altura, diferentes países já sofriam com o colapso do sistema de saúde e presenciavam, atordoados pela rapidez e severidade do vírus, seus cidadãos morrerem às centenas. A adoção de medidas mais rígidas, como o controle de circulação de pessoas e o uso de máscaras de proteção individuais, foram alternativas que, naquele momento, provaram ser eficazes para reduzir a velocidade da tragédia enquanto governos organizavam as estratégias de contra-ataque.

A onda de contaminação e mortes que assustou o mundo chegou tardiamente ao Brasil. E o que poderia ser uma vantagem -considerando que os protocolos de biossegurança recomendados por especialistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) já haviam dados resultados positivos em outros países – tornou-se objeto de disputa política.

Por aqui, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não apenas ignorou os muitos alertas, como alimentou a descrença na gravidade da doença. Em pronunciamento oficial em cadeia nacional de rádio e TV (24/03/20), chamou o coronavírus de “gripezinha”, condenou governadores que decretaram isolamento social rígido e citou o uso cloroquina como tratamento para a Covid-19, medicamento cuja eficácia não foi comprovada cientificamente para tratamento de infectados pela doença. Naquele momento, o presidente deixou claro o seu posicionamento e o tom que adotaria ao longo de toda a pandemia: a politização de medidas contra a pandemia.

Seguindo esse receituário, Bolsonaro ironizou mortes, promoveu aglomerações, desacreditou a eficácia da vacina, além de desautorizar e boicotar seus ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e Nelson Teich, por discordarem quanto aos procedimentos a serem adotados no enfrentamento a pandemia. Ambos entregaram o cargo.

Para ocupar a pasta do Ministério da Saúde, Bolsonaro optou pelo general Eduardo Pazuello. A justificativa era de que o general seria nome qualificado, já que é especialista em logística. As muitas trapalhadas do ministro provaram o contrário, indicando que a escolha por Pazuello devia-se muito mais à obediência ao presidente do que às qualidades técnicas.

No domingo, 14 de março de 2021, momento em que escrevo esse artigo, circula na mídia a informação de que Pazuello deve afastar-se do Ministério.

Já vai tarde!

A responsabilidade pela vida e pela saúde das pessoas caiu no colo de governadores e prefeitos, que, em ritmo e intensidade diferentes, tomaram as medidas cabíveis para salvaguardar seus cidadãos.

O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), foi um dos primeiros a montar um comitê de crise e a decretar medidas de isolamento rígido no Estado.

Interpretando as ações dos governos estaduais – sobretudo daqueles administrados por partidos de esquerda – como críticas ao seu governo, o presidente dobrou a aposta.

Em sua narrativa tresloucada, afirmou que a opção de governadores e prefeitos em adotar lockdown tratava-se de boicote ao governo federal no plano econômico. A cobertura da mídia sobre a maior crise sanitária e as mortes anunciadas diariamente não passariam de exagero da “imprensa mentirosa”, cujo objetivo seria desgastá-lo no plano político. Como resposta, Bolsonaro apostou no milagroso “tratamento precoce”, que, segundo ele, teria a capacidade de proteger as pessoas e manter a economia funcionando.

Aliados políticos em diferentes estados compraram a tese. Não sei em que medida essas figuras políticas acreditam na hipótese do “boicote ao presidente” ou estão apenas aproveitando o momento para marcar lugar de oposição aos governadores e prefeitos ou por outro motivo qualquer. Mas o fato é que em suas bases eleitorais se tornaram críticos do lockdown e da vacinação e defensores do suposto “tratamento precoce”. Prefiro não arriscar uma resposta. Deixarei que o leitor tire suas próprias conclusões.

Em todo caso, não custa lembrar que 2022 é logo ali.

No Ceará, temos alguns representantes dessa classe de políticos. Para não me estender muito, vou citar apenas dois: o deputado federal Capitão Wagner (Pros-CE) e o senador Eduardo Girão (Pode-CE). O primeiro disputou a prefeitura de Fortaleza como “candidato de Bolsonaro” e foi derrotado no segundo turno. O segundo mira a sucessão ao governo do Ceará em 2022.

Sobre Wagner, vale lembrar que o deputado acompanhou Bolsonaro na última visita ao Ceará (26/03/21). Ocasião lamentável em que o presidente, sem máscara de proteção, passeou pelas ruas de Tianguá e Caucaia promovendo aglomerações, em completo desrespeito aos decretos estaduais em vigor.

Opositores ao grupo político no poder no estado e na Prefeitura de Fortaleza, Wagner e Girão se colocaram contrários ao lockdown no momento em que o Ceará vive a pior fase da pandemia desde 2020. Argumentam que trabalhador e empresário não podem ser penalizados, que “a fome também mata”. Apoiaram manifestações contra a restrição das atividades econômicas.

São medidas amargas, eu sei. Mas necessárias para tentar reduzir a propagação do vírus enquanto a vacinação não ocorre na velocidade ideal.

Em artigo intitulado Tratamento preventivo precoce ou lockdown, publicado no jornal O Povo (13/03/21), Girão criticou o lockdown no Ceará e insinuou que a medida poderia ter sido evitada caso o Governo do Estado tivesse adotado o “tratamento precoce”. Além disso, questionou a eficácia da vacina.

Posicionamentos dessa natureza só contribuem para que as medidas de isolamento não sejam obedecidas. E se não forem obedecidas? De nada servirão. Aumentando o número de famílias enlutadas, as empresas fechadas e os empregos perdidos. Quem pagará essa conta?

Vale destacar que a politização da pandemia não se restringe ao aspecto discursivo, mas também produz efeitos práticos sobre as políticas públicas, como bem pontuou Cleyton Monte em artigo sobre “fake news institucional”. No caso brasileiro, podemos apontar a falta de coordenação nacional no enfrentamento à pandemia (função que caberia ao Ministério da Saúde), a letargia quanto ao plano nacional de imunização, a quantidade reduzida de recursos enviados aos estados, etc. Esse comportamento também pode ser observado em relação aos parlamentares, quando, por questões políticas, recusam-se a enviar recursos de suas emendas parlamentares para gastos com saúde em seus estados.

Num regime democrático, o papel da oposição é fazer contraponto aos governos e propor alternativas. Mas em cenários como o que vivemos, é também baixar as armas e unir forças porque o inimigo é o mesmo: o coronavírus.

Parafraseando Wagner, “o bem maior, que é a vida, não pode se sobrepor à politicagem”. Falta ao excelentíssimo deputado (e seu grupo) seguir o próprio conselho.

Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.