Bemdito

Falta coerência ao sistema tributário

Um debate político urgente: a racionalidade e os princípios de organização do sistema que regula a tributação no Brasil
POR Thiago Álvares Feital

Em novembro, o STF decidiu que as alíquotas do ICMS incidente sobre energia elétrica e telecomunicações não podem ser superiores à alíquota padrão. A decisão — que ainda pode ser alterada, pois não transitou em julgado — foi proferida no Recurso Extraordinário 714.139, por 8 votos a 3. Nela, o tribunal reconheceu a falta de coerência interna de um dos principais impostos brasileiros, o ICMS. 

Dizemos que algo é coerente quando possui consistência lógica, quando os elementos que o compõem estão devidamente integrados. Um texto é coerente quando o leitor consegue depreender o seu significado e estabelecer um nexo entre suas partes e o todo. O que na vida é uma virtude, no direito é uma condição fundamental. Na teoria contemporânea do direito, a coerência é uma característica indispensável dos sistemas jurídicos. A própria ideia de sistema remete à relação harmônica (coerente) dos elementos uns com os outros. As regras devem fazer sentido umas em face das outras, devem ser justificáveis diante de um conjunto de princípios superiores. 

No direito tributário, a coerência determina que os tributos sejam justificáveis diante dos princípios constitucionais. É uma característica da Constituição brasileira ser pródiga em princípios tributários. São muitos os preceitos constitucionais que tem o propósito de preservar a cidadania em matéria tributária. Dentre estes, está o princípio da seletivida que é especialmente relevante na tributação do consumo.

Por meio da seletividade, a Constituição determina que a tributação das mercadorias mais essenciais seja menor do que a tributação das mercadorias mais supérfluas. Foi justamente o princípio da seletividade que foi colocado em questão no julgamento do RE 714.139. No caso, questionava-se a constitucionalidade de uma norma de Santa Catarina que estabelecia alíquota de 25% para energia elétrica e telecomunicação quando a alíquota padrão daquele estado é 17%. 

Apesar dos estados serem relativamente livres para estabelecer a alíquota que incidirá sobre cada mercadoria ou serviço, o princípio da seletividade impõe uma diretriz clara. Caso o estado opte por estabelecer alíquotas diferenciadas, a diferenciação deve se dar em função da essencialidade daquilo que está sendo tributado, de modo que as mercadorias mais essenciais sejam menos tributadas. É neste contexto que o STF concluiu que a alíquota de 25% para energia elétrica e telecomunicação é incompatível com a Constituição. Tanto a energia elétrica quanto os serviços de comunicação são essenciais. Nesta condição deveriam ser tributados por uma alíquota condizente com o seu caráter básico.

O julgamento ainda não terminou. O Tribunal decide agora a partir de quando a decisão passará a valer. O Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda, Finanças, Receita e Tributação dos Estados e Distrito Federal enviou carta ao STF, pedindo que a decisão se aplique apenas a partir de 2024. O ministro Dias Toffoli, único a se manifestar sobre a modulação de efeitos, votou no sentido de postergar os efeitos da decisão para 2022. Com o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, o julgamento foi interrompido. Qualquer que seja o resultado do julgamento, o problema — apontado pelos estudiosos há anos — não pode mais ser ignorado. A falta de racionalidade do sistema tributário, que se reflete na falta de homogeneidade das alíquotas do ICMS, afronta a Constituição, torna a tributação pouco compreensível para o cidadão e incrementa a desigualdade.

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.