O feminino de músico
A história das mulheres no jazz é maior do que a quantidade de mulheres nas bandas de jazz
Paulo Carvalho
paulomarquesdecarvalho@gmail.com
Um aviso dos editores! Recomendamos fortemente ler este texto ao som das mulheres cuja arte inspirou o mergulho do nosso colunista. Aqui vai uma playlist especial: Mulheres no jazz
Gosto de colocar trilha sonora para receber uma folha em branco. Fui acolhido pelo som da orquestra de Lil Hardin. Sublime e adequada para um mês de março que marca a luta pelos direitos das mulheres. Lil Hardin foi o primeiro nome feminino a ingressar no alto escalão do jazz instrumental, na década de 1920. Ela é autora de várias composições assinadas por Louis Armstrong, com quem também foi casada.
A trilha foi me levando para outros caminhos, mas a proposta inicial para essa página em branco era um artigo sobre o trabalho da mulher para somar aos debates deste mês de março. Quando se fala em mulher no mercado de trabalho, o debate deve ir muito além do tema da inclusão. Fazendeiras, lavadeiras, comerciantes e escravas, as mulheres sempre trabalharam. Há uma pesquisa do arqueólogo Dean Snow, da Universidade de Pensilvânia, que conclui que as pinturas rupestres eram feitas majoritariamente por mulheres, em períodos anteriores ao uso da linguagem. As pinturas indicavam que elas não só estavam envolvidas na caça, mas também na produção da arte. Nos primeiros inquéritos científicos sobre a condição operária, os registros de exploração do trabalho da mulher estavam presentes, de modo que as primeiras legislações operárias já contemplavam questões sobre o trabalho feminino. A playlist me levou a Nina Simone em Work song, uma música sobre novas formas de escravidão nos Estados Unidos. Voltamos ao jazz, esse filho das canções escravas e do ritmo desbravador das liberdades civis do Século XX. Embora tido com um ritmo patriarcal, as mulheres também estavam lá.
No imaginário das mulheres no jazz, está Billie Holliday, Ella Fitzgerald, Bessie Smith, Sarah Vaughan e aquela lista apaixonante de quem fez história no gênero. É que, quando se imaginava uma mulher no jazz, a expectativa do seu lugar era o de cantora. A presença de instrumentistas femininas nas big bands era inexistente ou, no máximo, restrita a instrumentos mais comportados, como o piano. O piano de Lil Hardin Armstrong, assim como o de Lovie Austin ou da grande dama Mary Lou Williams, quebram o monopólio dos nomes masculinos e rompem com uma linguagem jazzística fechada ao feminino. A revista especializada Downbeat chegou a publicar, na década de 1930, um editorial intitulado Why women musicians are inferior. As instrumentistas do trombone, do contrabaixo, dos metais agrediam o imaginário viril de uma orquestra.
Na chegada e popularização do vibrafone nos grupos de jazz, por exemplo, há a presença de Margie Hyams e Terry Pollard. Enquanto o órgão era um instrumento privado ao jazzmen, Shirley Scott chega com seu jazz organ criativo. As fotografias das orquestras estampam uma divisão sexual dos instrumentos alinhada à divisão sexual da produção. O trombone de Melba Lisbon ou o saxofone de Vi Redd rompiam a tirania dos estereótipos e venciam o estranhamento da imagem de uma mulher de bochechas infladas com lábios em um bocal. Em um tempo em que o jazz era considerado um ritmo subversivo, Valaida Snow , a rainha do trompete, chegou a ser presa pelo regime nazista por ser jazzista e negra.
No Brasil, na década de 1950, quando Dizzy Gillespie veio se apresentar no Rio, a presença de Melba Lisbon na orquestra inspirou a “princesa do rádio”, Gilda de Barros, a tocar trombone . O caso virou notícia no tradicional Jornal do Rádio, com uma manchete que questionava: Mulher deve tocar trombone?. A pergunta assina a tentativa de excluir vidas e talentos de nomes femininos dos anais da história da música instrumental. O trompete de Clora Bryant, as composições de Alice Coltrane, as bandas femininas de Peggy Gilbert, as big bands de Toshiko Akiyoshi e Carla Bley, as interpretações de Joanne Brackeen, o sax de Jane Ira Bloom, a guitarra de Emily Remler tocavam a história com shows que recusam ser silenciados. Dorothy Donegan, Amina Claudine Myers, Marilyn Crispell, Jessica Williams, Jutta Hipp, Mary Halvorson, Geri Allen, Terri Lyne Carrigton são nomes da história do jazz que não podem se ofuscar pelo protagonismo masculino dos enredos.
O lugar da mulher na sinfonia do mundo do trabalho é uma questão que ainda precisa ser refletida hoje para que seja um debate obsoleto no futuro. A 10ª edição do Global Gender Gap Report, do Fórum Econômico Mundial, concluiu que, no atual ritmo do progresso, a paridade econômica de gênero em todo o mundo levará 118 anos. Apesar dos grandes exemplos de bandleaders divididos aqui, os altos postos empresariais continuam masculinos e a maioria das empresas possuem salários mais altos para homens. Temas como exaustão materna e divisão das tarefas do lar não podem sair de vista nesse debate.
Estatisticamente, a média de horas semanais dedicadas aos cuidados domésticos é muito maior em mulheres do que em homens. No Nordeste, segundo pesquisa do IBGE, para mulheres é uma média de 21,8 horas semanais, enquanto para o homem é de 10,5 horas. A pandemia intensificou o trabalho da mulher com a sobreposição de afazeres domésticos e profissionais. Segundo recente relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a crise sanitária gerou um retrocesso de mais de uma década em avanços na participação feminina no mercado de trabalho na América Latina. No Brasil, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), o contingente de mulheres fora da força de trabalho aumentou 8,6 milhões em 2020, na comparação entre o terceiro semestre de 2019 e o mesmo período do ano passado. Nem trago aqui o tema sobre o assédio sexual porque, assim como os pontos colocados acima, rendem uma prosa própria. Ou seja, apesar dos avanços, ainda há uma orquestra histórica e desafinada quando o assunto é isonomia de condições entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
A trilha sonora para este tema acabou trazendo a progressão de acordes resistentes de Leni Stern, Matana Roberts, Susana Santos Silva, Anat Cohen, Linda Sharrock, Esperanza Spalding, Eliane Elias, Tania Maria. O combate para emancipação de cantoras e instrumentistas do jazz, sobretudo negras, pode ser lido no livro Jazz Ladies – A história de uma luta, de Stéphane Koechlin, ou visto no documentário The girls in the band, da Judy Chaikin. As audições às cegas, que acontecem atrás de um pano, aumentaram a presença de mulheres instrumentistas nas orquestras, mas elas ainda são minoria. Se a música é uma expressão social que adota o som como linguagem, essa linguagem instrumental ainda é, predominantemente, masculina. No Brasil de Chiquinha Gonzaga e Dona Edith do Prato, com condições ainda precárias de políticas culturais e profissionalização dos trabalhadores da música, a condição das mulheres instrumentistas é uma desafio ainda maior. Por isso, exemplos como a Jazzmin’s Big Band, a primeira banda feminina de jazz no Brasil, não podem passar despercebidos.
Quem domina um instrumento musical sabe o tempo, a dedicação e a energia que essa atividade exige, sobretudo para quem quer transformá-lo em um instrumento de trabalho e sustento. A minoria dos instrumentos tocados por mulheres em bandas não é uma questão de talento ou qualidade artística, mas de uma cultura sexista, que ainda atinge o mercado de trabalho em muitos setores.
O combate ao tons do sexismo deve ir além de março, além de gêneros. Muita gente pensa que o feminino de músico é musicista. Musicista é uma profissão expressa em uma palavra que não tem gênero fixo. Na nossa língua, o feminino de músico é música.
Paulo Carvalho é professor de Direito do Trabalho e doutor em Ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrado no Instagram.