O vulcão que assa salsichas
Na pequena e inóspita Islândia, pandemia está sob controle e população pode se divertir à beira de um rio de lava
Marcos Nogueira
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Como está o dia aí em Fortaleza?
Aqui em São Paulo está agradável, ensolarado, 25 graus antes das 10 da manhã. O home office até me permite dispensar o uso de camisa enquanto escrevo, na terça-feira, 23 de março.
Fortaleza, pelo que vejo no aplicativo do smartphone, registra temperatura dois graus mais alta. Com a brisa do oceano, deve estar o paraíso.
Pena que precisemos todos nos trancar em casa, sob o risco de contrair a doença mortal que paira lá fora.
Poderia ser pior? Sempre pode, ora.
Só imagina estar, neste momento, na Islândia. Agora chove lá, daqui a pouco vai nevar, é uma friaca sem fim, 3 graus ao meio-dia e previsão de até 6 negativos nesta semana.
O país-ilha fica quase no Polo Norte e só é habitável por causa de um microclima que impede o congelamento geral de coisas e criaturas. Esse microclima, por sua vez, é resultante da atividade vulcânica intensa e incessante.
Ontem, segunda-feira, vi a Islândia na TV. Parece que rolou uma série interminável de terremotos e erupções. As imagens são de um rio de lava em algum lugar perto da capital Reykjavik –a bem da verdade, tudo na Islândia é perto da capital Reykjavik.
A massa pastosa de rocha derretida se move em passo de caramujo, com línguas alaranjadas de matéria incandescente. Um espetáculo dantesco. Aquele lugar é uma pústula da crosta terrestre, um furúnculo pedregoso perdido no Atlântico Norte.
O showzinho vulcânico atraiu uma pequena multidão, como são pequenas todas as multidões islandesas. Gente muito, muito branca em casacos muito, muito grossos.
E o que fazem essas pessoas na boca do vulcão? Elas carregam pães, salsichas e bisnagas de ketchup. Foram brincar assar cachorro-quente direto na lava. A polícia só olha de longe para evitar que alguém se atire no rio de fogo. É um vulcão soft, sem explosões abruptas.
Ninguém usa máscara porque, fiquei sabendo, a pandemia está sob controle no país.
Enquanto o Brasil deve chegar hoje (quarta-feira, 24) aos 300 mil cadáveres da Covid-19, na Islândia morreram apenas 29 pessoas desde a erupção da peste. Isso mesmo: vinte e nove. Acabei de pegar os dados no mapa da Covid da Universidade Johns Hopkins.
Sim, a Islândia é um país minúsculo, com 364 mil habitantes. Mesmo em escala, seus números impressionam positivamente. Aqui, morreram cerca de 140 pessoas em cada 100 mil; lá, apenas oito. A diferença é escandalosa.
A ilha nórdica foi objeto de uma reportagem da Nature, em dezembro de 2020, com a seguinte manchete: “Como a Islândia Esmagou a Covid com Ciência”. Não é qualquer publicação, é a mais prestigiada revista científica do mundo.
Todo brasileiro já ouviu –quando não replicou– a lengalenga de que aqui é uma terra privilegiada, de clima bom, protegida de desastres naturais como vulcões e terremotos.
Em primeiro lugar, é uma falácia o “em se plantando tudo dá”, já propalada na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. Nosso ambiente é hostil ao seu modo. E o mito da natureza generosa favorece a ação de crápulas que, por exemplo, querem nos convencer de que a Amazônia é vasta demais para ser aniquilada pela exploração humana.
Segundo: estamos protegidos de vulcões e terremotos, mas não de nós mesmos.
Precisamos nos emendar se quisermos voltar a assar salsichas na lava vulcânica ou, melhor ainda, comer camarão frito na praia.
Marcos Nogueira é jornalista especializado em gastronomia. Pode ser encontrado no Cozinha Bruta, no Twitter e no Instagram.