Sobre ler (e escrever e publicar) teatro
Novo ânimo na publicação de dramaturgias movimenta mercado editorial e vida teatral no Brasil
Magela Lima
lima.magela@gmail.com
Em 1973, então com 23 anos e já contabilizando um jornal fechado no currículo, Gilmar de Carvalho viu sair da gráfica seu primeiro livro. Sorte a nossa, não parou mais. É dos cearenses que mais editou e mais foi editado. Nesses quase 50 anos, soma bem mais de 50 títulos, passeando pelos mais diversos gêneros. Pluralia Tantum: Um livro de legendas, aquele primeiro, é uma colagem de textos em prosa. São 41 narrativas, não narrações. Orixás do Ceará titula o conjunto de nove delas. Com esse recorte, Gilmar estreia como dramaturgo em 11 de julho de 1974, em montagem dirigida por Marcelo Costa para a Cooperativa de Teatro e Artes. O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira, sua primeira peça de teatro a ganhar as páginas, data, no entanto, dos anos 1980. Fundador do Grupo Balaio, ele incorporou ao cotidiano do coletivo, dos mais importantes no Ceará, o hábito e o compromisso de publicar suas dramaturgias originais. Curiosamente, Orixás do Ceará, logo ela, aquela primeira, só foi performada em livro em 2011.
Mas, toda literatura não é, fundamentalmente, teatro? Embora pergunte como que para responder que sim, Paul Zumthor, na prática, tinha motivos de sobra (temos todos, até hoje) para relativizar essa tese. Especialmente, diante do esforço de procurar situar o lugar do livro, enquanto produto cultural. O mercado editorial, por exemplo, adora, de coração, uma prateleira bem dividida. Para cada poética, uma seção. Assim, fica mais fácil organizar o consumo e, consequentemente, as livrarias. Por falar nelas, faça, agora, o seguinte exercício: 1. Imagine um mundo de trânsito livre, com as livrarias de portas abertas; 2. Aleatoriamente, escolha uma e entre. Caso não saiba de cor, pergunte a algum daqueles funcionários sempre gentis, onde ficam os títulos de teatro; 3. Procure por dramaturgias. Se não for pedir demais, tente garimpar alguma obra nacional. Pois bem, para além dos gregos, algum Shakespeare e um ou outro brasileiro que tenha ido parar no cinema ou na televisão, a cena que você acabou de fabular, muito provavelmente, seria bastante desinteressante e restrita de opções na vida real.
É possível acreditar, entretanto, que dentro de mais algum tempo (não, muito), a depender do ritmo intenso de trabalho e de lançamentos de uma série de novas editoras e selos editoriais, tenhamos acesso, enfim, a um panorama mais diversificado de literatura dramática no Brasil. Das mais recentes em atividade nesse segmento, a La Lettre, de Curitiba, parceria da dramaturga e pesquisadora Lígia Souza e do ator e designer gráfico Pablito Kucarz, tem circulado entre a literatura e o teatro, produzindo espetáculos, ações de formação e também publicações, com a crença de que nada substitui o papel e que o livro tem uma potência nele mesmo. Assim, em pouco mais de um ano de atividade, a La Lettre publicou, em cinco volumes, 12 textos de dramaturgos egressos do Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná, projeto coordenado pela própria Lígia Souza, além de AQUI – Amanhã é outra imagem, texto dela em colaboração com a Súbita Companhia de Teatro, e Penélope, também de Lígia, encenado com direção de Nadja Naira, em mais um encontro de Pablito Kucarz e a linda Uyara Torrente.
Com mais de 15 anos de atividade e um catálogo que supera 200 títulos de textos teatrais publicados, reunindo autores de grande projeção, como Lauro Cesar Muniz, Maria Adelaide Amaral e Mauro Rasi, o escritor e roteirista Alex Giostri brilha os olhos com as notícias que lhe chegam de cada novo concorrente. Aos poucos, ele foi percebendo que o mercado editorial, particularmente o que se interessa por dramaturgias, funciona bem melhor em conjunto. Já que, em sua Giostri Editora, por exemplo, não há espaço para dramaturgos estrangeiros, nada mais justo que a lacuna das traduções, sempre muito bem-vindas (traduz-se muito pouco teatro no Brasil), seja preenchida pela iniciativa de outros editores. Só assim, em parceria, ele argumenta, parece ser possível superar questões estruturais como o caráter esporádico e pouco variado das publicações e a excessiva dependência que o teatro de texto tem do teatro de cena. Essa cooperação, mesmo não pactuada, vai ser decisiva ainda, complementa Giostri, para fomentar o surgimento de novos autores, alguns até mesmo ainda desconhecidos dos palcos, e novos leitores, que não se relacionem com o livro de dramaturgia tão somente como souvenir, como lembrança, do espetáculo.
Ator, diretor e dramaturgo, Marcio Abreu, fundador da curitibana Companhia Brasileira de Teatro, é também um entusiasta da publicação de textos teatrais. Ele, que tem editado suas obras mais recentes em parceria com a Editora Javali, de Belo Horizonte, e a Editora Cobogó, do Rio de Janeiro, compreende a impressão de dramaturgias como uma ação poderosa, uma oportunidade ímpar de fazer circular ideias e, sobretudo, de produzir conhecimento. Márcio entende a produção e difusão dos livros de peças de teatro como um movimento. No papel, ele acredita, o teatro ganha outros registros, percorre outros caminhos, interage com outros públicos. “O que parece anacrônico tem, na verdade, um poder enorme de transformação. Publicar livros também faz parte da expressão do teatro. O surgimento de editoras voltadas para dramaturgia no Brasil é importante porque simboliza a formação de um lugar de discurso e de pensamento no mercado editorial. Uma publicação continuada e permanente forma uma rede, possibilita diálogos. Hoje, a gente começa a deixar de ter iniciativas pessoais, isoladas, e começa a pensar em perspectiva, de forma integrada, com um livro complementando o outro, um autor complementando o outro”, considera.
Com foco exclusivo em livros de teatro, esse cenário alvissareiro que Márcio Abreu identifica, vem se tornando mais expressivo graças ao trabalho de editoras como a Javali, criada pelos dramaturgos e atores Assis Benevenuto e Vinícius Souza em 2015, e a Temporal, fundada em 2018 pela administradora Florence Curimbaba, em São Paulo, que orientam suas realizações aproximando possibilidades de pesquisa e fomento no campo da literatura dramática. Uma mais dedicada a autores brasileiros, aos corpos de hoje e à chamada cena contemporânea, publicando artistas como Jé Oliveira e Janaina Leite, a outra, com um olhar mais de memória para o teatro nacional, revisitando a obra de Oduvaldo Vianna Filho; uma mais eurocêntrica em suas traduções, apresentando dramaturgias como a do alemão Botho Strauss e a do francês Jean-Paul Alègre, inéditas no Brasil, outra com um viés mais abrangente, trazendo peças do chileno Guillermo Calderón e do libanês Wajdi Mouawad para o nosso português, Javali e Temporal, em certa medida, complementam-se e fazem pensar na especificidade dos projetos editoriais voltados para o teatro.
“Publicar teatro é fazer teatro? De alguma forma, sim! Não é teatro, mas é fazer algo essencial do teatro. O fazer teatral não é apenas aquilo que vemos no palco durante uma ou duas horas, a apresentação. Aquilo é 5% do fazer teatral. E é muito triste que as pessoas não saibam, não vivenciem isso. Porque é nos outros 95% do fazer teatral que está a grande magia do humano, ali está o autoconhecimento, o exercício complexo de democracia, a coletividade”, destaca Assis Benevenuto. Embora reforce que a dramaturgia e o fenômeno teatral estão sempre em diálogo, e que nenhum dos dois se reduz ao outro, e, sim, mantêm entre si uma tensão viva, Philippe Curimbaba Freitas, editor da Temporal, atenta que o livro de textos de teatro demanda uma configuração própria, inclusive no que diz respeito ao design gráfico. Com isso, o esforço da Temporal se propõe a aproximar o público-leitor em geral, aquele que aprecia livros e está em busca de novas experiências literárias, do público-leitor artista, que demanda edições leves, de fácil manuseio, com tamanho e cor de fonte legíveis, indicações de rubricas diferenciadas, facilitando leituras confortáveis em ensaios e até mesmo em cena.
É importante pontuar que esse movimento de zelo e carinho pela publicação de dramaturgias se espraia pelo Brasil. Felizmente. Em Natal, a Editora Fortunella, criada em 2013, tem estabelecido um diálogo muito intenso com autores ligados às práticas de teatro de grupo no Nordeste. Entre os títulos publicados, estão Aquilo que meu olhar guardou para você e Dinamarca, textos de Giordano Castro encenados pelo Grupo Magiluth, de Recife, e Guerra, Formigas e Palhaços, peça de César Ferrario montada pelo elenco do Grupo Estação de Teatro, lá mesmo da capital potiguar. “Minha preocupação, antes de me ocupar em transformar um texto em livro, é o registro. Como editor, minha prioridade é essa: criar o registro, documentar. Meu desejo é que o texto teatral sobreviva a quem o escreveu, a quem o publicou, a quem assistiu à encenação. Para que daqui a 20, 100 ou 200 anos, alguém possa dizer: ‘Olha, está aqui a prova de que essa peça existiu! Ela ainda existe!’. O teatro texto mantém a possibilidade de se voltar à cena, ele dá a oportunidade de muito mais gente, em qualquer lugar, em qualquer tempo, ter essa experiência maravilhosa e única”, observa o editor Sandro Fortunato, fundador da Fortunella.
Sentimento compartilhado quase que de forma geral por quem está na lida de fazer o teatro circular no papel. Philippe Curimbaba Freitas, por exemplo, também defende que registrar o texto teatral em livro é garantir uma permanência maior da obra no tempo. “O texto dramatúrgico é importante por possibilitar que uma peça perdure para além da sua apresentação cênica, por permitir um olhar mais demorado e atento àqueles detalhes que nunca conseguimos apreender totalmente ao ver um espetáculo e também por permitir um outro tipo de relação com a peça teatral, menos cênica e mais literária. Como literatura, a dramaturgia sobrevive de modo relativamente independente ao fenômeno teatral”, diz. Diante de desejos comuns, assim também são os dilemas. Além do constante esforço de procurar entender o que é o teatro e o que é a literatura dramática, ou como cada peça deve ser pensada no diálogo entre o acontecimento teatral e o livro, Assis Benevenuto afirma que o desafio maior de publicar dramaturgia é, justamente, a formação de público leitor. Daí, ele ser categórico: “Se há uma defasagem de publicação na área do teatro, isso significa que há muito trabalho a ser feito, muitas frentes, e isso não pode nem deve ficar a cargo de uma editora apenas”. Tem toda razão. Temos hoje, é fato, muito mais livros e autores e cenas circulando, mas ainda é pouco. Publicar mais é algo inteiramente ligado aos processos de fomento à escrita e à leitura.
Então, leiamos mais. Leiamos mais teatro. Leiamos mais teatro em livros. Leiamos mais teatro em livros impressos. Leiamos mais teatro em livros impressos editados no Brasil. Leiamos mais.
Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.