A escuta incondicional
Uma declaração de saudade às amizades em que podemos nos demorar
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
Amiga,
lo extraño
lo busco entre millones de miradas
Malena Saito
Quando a água começou a borbulhar no fervedor, segurei-o pela alça e levantei-o da boca do fogão em direção à xícara de chá. Num breve descuido, a alça escorregou pelos dedos e a água quente banhou-me a mão direita. Após certo tempo paralisada, fitando o chão da cozinha, resolvi abrir a torneira e deitei a mão na pia, embaixo da pequena cachoeira que aliviava o calor dolorido da pele. Não consegui lembrar a última vez em que havia me queimado. No contrafluxo dos planos bem delimitados em listas e apontamentos na agenda, os acidentes mínimos vêm abrasar a ordem que invento todos os dias. A vida às vezes desliza por entre os dedos, desmancha acordos e prova que não há mesmo coerência alguma na sucessão dos acontecimentos. Estou só e sinto saudade de minhas amigas.
Em julho de 2018, fui a Buenos Aires na companhia de Bianca e Vanessa. Minha tarefa à época, talvez não tão clara para elas, tratava-se de superar o coração partido. No faro dos livros, adentramos uma livraria em Palermo que também era bar e restaurante à noite. Tomamos cerveja, enquanto eu seguia me segurando num galhinho de ânimo, sem desabar diante do rapaz por quem havia me apaixonado um ano antes e que na ocasião surgiu ao lado da namorada. Fingi que estava tudo bem e pedi ao moço da livraria sugestões de poetas contemporâneas. Ele me apresentou um livro de capa marrom, fininho, sem informação na lombada, quase imperceptível no meio da prateleira. Na capa impressa artesanalmente, além do título Amiga (2017), de Malena Saito, e o nome “Editorial Santos Locos – Poesia”, o desenho de duas gatas abraçadas não me convenceu.
A aura infantil do desenho me enganou quanto à maturidade dos poemas, mas os primeiros versos me fizeram colar o livro ao peito, impedindo o choro súbito. Toda a solidão úmida que pesava em cada página também era minha. “Me gustaría decirte/ amiga/ que toda la cerveza/ que tomamos en estos años/ es un tobogán/ un pasaje para desarmar el dolor/ escondido atrás de los dientes/ que se pudren por la fuerza del miedo.” Ao longo daqueles dias de inverno, quando nos aquietávamos ao fim das caminhadas no quarto alugado de um antigo apartamento, recorri muitas vezes ao livro para me sentir acolhida novamente ou para ler um trecho em voz alta a Bianca e Vanessa. Estávamos ali, aderidas às linhas digitadas em New Gothic que denunciavam nossas manias, ansiedades e angústias mais pulsantes.
Em boa parte do livro, o eu lírico feminino parece enclausurado no ambiente doméstico, agindo como autômato, separando verduras compradas aleatoriamente, picando legumes que ainda não apodreceram e acendendo cigarro após outro. Quando o vazio oprime e os sons da cidade perfuram as paredes, a voz se refere àquela que nunca está de fato presente: “Amiga,/ ¿Qué se hace con el silencio?/ Estoy muy sola/ intento masturbarme y me perturba la tristeza.” Malena conta que os poemas reunidos no livro foram escritos durante o ano em que esteve sem casa própria e perambulou pelos lares de amigas que viajaram e lhe confiaram seus espaços íntimos. Então, de certa forma, o ambiente evocava a presença delas, com quem Malena podia conversar em silêncio.
A escuta incondicional da amiga é convocada a todo instante, no lançamento de problemas que ecoam sem resposta, na espera em vão, na busca de desejos perdidos precocemente, na tomada de decisões nem sempre corajosas. “O de cuando te fuiste/ y me dejaste tu casa/ con el freezer lleno/ y las frazadas de invierno abajo”. Há um misto de mágoa e agradecimento nesses versos. Para Malena, com quem conversei por e-mail, a amizade é o lugar onde se pode ficar apenas, sem grandes expectativas, demorar-se, comentar uma dor, comer um frango com as mãos, cuidar e ser cuidada, talvez passar do ponto e dormir.
Em pleno abril de 2021, sei que não posso convidar as amigas para um almoço, no qual conversamos loucamente e atrapalhamos umas às outras, inebriadas mais pela energia do encontro do que pelo álcool da cerveja. A queimadura na mão já não incomoda. Varro o chão da sala vezes seguidas como quem recolhe indícios daqueles que não vão embora porque entraram demais dentro da gente. Retomo os poemas de Malena e leio-os em voz alta, para elas: “Quizás/ ser amigas ahora/ no signifique más/ que de vez en cuando/ hacernos un favor/ un chiste/ compartir una persona./ No obstante siguen intactas/ las luces/ tus manos/ y esas palabras/ que todavía hoy/ sigo sin escuchar/ por el ruido/ de la fiesta/ que/ nos hablaba/ por primera vez/ en nuestro idioma.”
Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.
Serviço
Amiga
Malena Saito
57 páginas
Editora Santos Locos, 2017
Preço: R$ 34