Entre safras e cifras possíveis
O que os hábitos de consumo das classes médias dizem sobre desigualdade e comportamento social
Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com
Além dos abismos sociais impostos pela desigualdade escancarada, existem degraus mais sutis de distinção social. Aqueles localizados apenas quando esmiuçamos as classes. Há um que fica mais ou menos ali, variando entre o B+, B, B- e, se perigar, encosta no C, na emenda da média para média baixa. Não é lá uma luta de classes. Está mais para uma birra, uma implicância passageira. Esses (des)níveis costumam aparecer durante a seleção de bens de consumo e experiências de lazer. Na escolha do prato, na avaliação da coluna do preço do cardápio, na reserva da pousada, na prateleira das cervejas puro malte às turbinadas com milho, enfim. Ser brasileiro de uma classe média cada vez mais instável é isso: um “balança, mas não quer cair”. E, depois da queda, é optar entre fugir, rir, indignar-se ou adquirir uma dívida para não fazer feio diante dos amigos menos sensíveis à realidade dos bolsos alheios.
A recorrência das tais situações nos impõe um acúmulo de repertório com respostas prontas, sinceras ou nem tanto, aos que não estão nem aí para os boletos. Claro, vai depender da audiência e do grau de intimidade que há neste jogo social. Chefe, amigo de infância, novo affair? “Hum, já jantei”, “nunca gostei muito de cerveja importada”, “eu não tenho dinheiro pra isso”, dentre outras. Cada qual desenvolve sua estratégia. Aqui em casa adotamos uma de não nos acostumar com o que é caro. A vida tem seus júbilos, mas quem os transforma em necessidades básicas corre o risco de sofrer com qualquer desequilíbrio no apurado mensal. Essa parece-me uma boa saída àqueles que não veem nem a longo prazo a ascensão à riqueza. Trata-se não de uma fórmula geral, é uma estratégia e para nosso caso. Sugiro que procurem as suas.
Lembro-me de um evento no qual optei pelo silêncio (e risos internos). Um grupo de amigos, uns bem próximos e outros nem tanto. Cada casal levaria um vinho para noite marcada. Na dúvida, optamos pela segurança daqueles de 40, 50, 60 reais, chileno ou argentino, do familiar Pão de Açúcar. Na noite combinada, rapidamente, dois grupos formaram-se. O dos rótulos sul-americanos medianos e o dos que levaram o italianíssimo Brunello Di Montalcino. Em dado momento, de longe identifiquei a garrafa do vinho toscano que se desviou do caminho até minha taça. Naquela ocasião, entendo como justiça, mas não deixa de ser engraçado para uma noite de confraternização.
Por força das atividades profissionais e pela formação acadêmica, talvez eu tenha me habituado à ação, às vezes chata, de prestar atenção, enxergar além desta capa do social aceito e esperado. Isso deixa estas distinções de gosto e, principalmente, de falta de equidade financeira ainda mais evidentes. Deixei-me influenciar pelas leituras sociológicas, mas também pelos estudos sobre consumo durante a vida de publicitário. Mania de mexer com o que está quieto, de procurar o “escondido”. O que está inscrito nas micro diferenças ganha o aspecto macro.
O etnólogo Georges Balandier, mesmo longe das análises das classes médias brasileiras, apontava indícios de que as realidades colocam-se inevitavelmente no plural, dizendo ele que “as sociedades jamais são aquilo que parecem ser ou o que pretendem ser, elas exprimem-se em 2 níveis pelo menos; um superficial, apresenta estruturas oficiais; outro profundo, abre o acesso às relações reais mais fundamentais e às práticas reveladoras da dinâmica do sistema social.”. Mesmo sem a imersão nas comunidades estudadas por ele, isoladas das grandes capitais, vendo as coisas por aqui, eu penso que ele deve ter razão.
Cláudio Sena é professor e publicitário.