Uma sociedade não pode abrir mão de entusiasmo e cultura
A arte e a cultura possibilitam a abertura da experiência humana e ampliam a percepção acerca da existência do outro – são a porta para a saída do caos
Desirée Cavalcante
desireecavalcantef@gmail.com
Um ano atrás, não se poderia imaginar que estaríamos hoje vivendo o pior momento da pandemia. De tão repetida, essa frase já se tornou, praticamente, um clichê. No entanto, não há outra que revele melhor o quão esperançosos estávamos em relação à nossa capacidade de lidar com os problemas em escala global. Talvez fosse apenas uma expectativa própria da ignorância acerca da complexidade do que estava ocorrendo. Entretanto, o fato é que, em abril de 2020, por todos os lados surgiram debates sobre “o mundo pós-pandemia” e um “novo normal”, que, esperançosamente, era desenhado como uma realidade formada por pessoas mais unidas e mais solidárias.
Sabíamos, desde o princípio, que a crise sanitária não seria ultrapassada sem o esforço coletivo e sem a consciência de que as condutas individuais repercutem diretamente na vida dos outros. Estávamos diante do desafio posto a um mundo construído sobre o excesso de individualismo e a atomização social.
Um ano depois, não há como negar que falhamos. Não importa o que ocorra daqui em diante, a tragédia humana já aconteceu. No Brasil, especificamente, além de não lograrmos lidar com a crise sanitária, caminhamos para a temida crise econômica e aprofundamos a crise política que já estava em curso.
Nesse cenário, não surpreende que a marca social mais proeminente seja a insatisfação generalizada. De um lado, o otimismo parece ter se tornado escasso ou fruto de alienação, por outro, ao nos afogarmos em frustração, medo e apatia, somos expostos ao que há de mais nocivo às democracias. Fragilizamos os laços de solidariedade e deixamos de compartilhar a expectativa de construção de um mundo menos injusto.
O aprofundamento do desencanto e da insatisfação tem uma força corrosiva já experimentada por diversas sociedades em distintos contextos históricos. Esses sentimentos, quando coletivizados, tendem a repercutir como radicalismos, tolerância à violência e eliminação de direitos. Assim, exatamente por estarmos em crise, esse é um momento de reforçar tudo aquilo que caracteriza a experiência social como um processo de esperança e de identificação coletiva.
Não é por acaso que causa perturbação que, em semelhante contexto, também estejamos vivenciando ofensas e desconstruções diretas a setores de arte e cultura. A retomada da discussão sobre a tributação de livros e do papel destinado à sua impressão é um exemplo disso.
Além dos problemas constitucionais e da ameaça a um setor econômico que enfrenta dificuldades graves, uma proposta dessa natureza contraria todos os projetos de construção de uma sociedade com mais bem-estar social.
Em 2018, o Banco Mundial divulgou o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial dedicado à educação. O documento apontava uma melhora nas habilidades de jovens brasileiros de 15 anos, mas destacava que levaria 260 anos até que a taxa de melhoria de leitura alcançasse a de países mais ricos. Um dado como esse já serviria como oposição às políticas tributárias com potencial de dificultar o acesso à leitura. Mas o problema não se restringe a isso.
A centralidade do papel exercido pela educação para o desenvolvimento de sociedades é inquestionável. Perceber, no entanto, que educação não se limita a formação técnico-burocrática merece ser relembrado.
A cultura e a arte possibilitam a abertura da experiência humana e ampliam a percepção acerca da existência do outro. Por isso, são fundamentais para o aprimoramento e o exercício de afetos, empatia e solidariedade. Mais do que isso, possibilitam a manutenção da inspiração e da esperança, sem as quais qualquer projeto social é posto em risco.
É a cultura que permite que continuemos unidos, ao funcionar como vetor de conexão e de estruturação de todos os demais setores. Não é apenas mais uma área econômica em crise. É, na verdade, a porta indispensável para a saída do caos.
Desirée Cavalcante é advogada, professora e pesquisadora na área de Direito Constitucional. Está no Instagram.