Bemdito

A cigarra e a formiga

Viajar com os filhos pode ser uma experiência incrível, especialmente se for a trabalho e para escrever
POR Nara Vidal

Viajar com os filhos pode ser uma experiência incrível, especialmente se for a trabalho e para escrever

Nara Vidal
nara.vidal@hotmail.co.uk

Talvez eu tenha sido uma pessoa que vem se virando durante a vida. Não sou de grandes ambições, grandes luxos, e sempre tive um lado muito forte que é boêmio, criativo e que pouco planeja. Quando eu fiquei grávida do meu primeiro bebê, frequentei cursos que me ajudariam a planejar a vida a partir da dramática mudança que é um nascimento.

Boa aluna que sempre fui, li todos os livros, panfletos, sites. Ainda assim, quando ela nasceu, eu me lembro como se fosse ontem de jogar toda aquela lição pelo ralo e, ao me deitar, às seis da tarde e já esgotada e destruída, pensar na minha sorte de ter sobrevivido mais um dia.

Tocar meu rosto, meus braços e pernas e notar que eu estava inteira. Olhava a bebezinha e nela também não faltava pedaço. Era um senso de sobrevivência e planos e listas não conseguiam espaço na minha falta de rotina alucinante. 

Essa abordagem mais intuitiva para levar a vida vem me acompanhando há muito tempo. Confesso que tantas vezes sinto raiva de mim, inveja dos outros que se organizam tão bem. O fato é que aprendi a lidar com essa minha frustração, inclusive a de irritar os outros pela minha falta de comprometimento. Mas também chego a achar que eu tenho lá o meu valor ao levar a vida, não diria na flauta, mas quase isso. 

Há desejos meus que precisam, no entanto, da vulgaridade do dinheiro. Viajar sempre foi o mais perto que consigo chegar da ideia de céu, paraíso. Mas viajar custa. Já que ideia não me falta – se para cada ideia minha eu fosse paga… – decidi abrir e inaugurar uma revista online de viagens. Fiz o Instagram e comecei a contactar hotéis e restaurantes para que me recebessem e, em contrapartida, eu escreveria minha opinião sobre a experiência em duas revistas: a minha e a de uma conhecida que tem uma revista impressa, em inglês.

Para o meu completo espanto, não demorou duas semanas e eu estava num voo Londres-Lisboa onde ficaria hospedada num charmosíssimo hotel, além de ser convidada a jantar e escrever, não só sobre o hotel, como também sobre o restaurante. Marquei uma entrevista com o chefe, um talento da Ilha da Madeira, e ainda vendi a matéria para um jornal britânico. Pronto, estava inaugurada a minha nova carreira de resenhista de hotel. – Garanto que dá menos dor de cabeça do que resenhar literatura contemporânea. 

Em um ano, visitei Cannes, Nice, Paris, Lisboa, Olhão, Tavira, Faro, Porto, Roma, Cascais, Grécia, além de inúmeros restaurantes em Londres, eventos de prova de vinho, a vida levada na flauta, enfim, flauta doce. Minhas amigas, mulheres de negócio, gente que planeja, estavam surpresas com toda aquela movimentação. “Mas você não escreve, não é escritora? Desculpa, mas como viaja tanto?”.

Eu não sabia responder direito porque nunca tive um plano de negócios. As coisas foram acontecendo e eu fui escrevendo com gosto e gratidão. Acho que a melhor parte era poder levar alguém comigo. Meus filhos aproveitaram e, quando era publicada matéria, custavam a acreditar que aquelas palavras tinham nos proporcionado momentos tão agradáveis. 

Aí, veio a pandemia, a revista fechou e todo mundo parou de me odiar. Afinal, agora eu sofria e a viagem para a Hungria e para Romênia nunca aconteceu.

Nara Vidal é escritora, editora e tradutora. Mora na Inglaterra.

Nara Vidal

Escritora, tradutora, professora e editora.