A COP-26 e o povo
Há dois anos, a pandemia da Covid-19 aconteceu. Sim, dois anos: o primeiro caso no mundo surgiu por volta de novembro de 2019, segundo estudo publicado na revista PLOS Pathogens, em junho. Nesse período, a pandemia deu um “empurrãozinho” para que a discussão sobre as mudanças do clima entrassem no prumo – ou quase. A força desse debate e o consenso global em torno do tema serão medidos na COP 26, a primeira Conferência do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) após a pandemia da Covid-19.
Entre os cientistas brasileiros, há a percepção de que a pandemia reafirmou a importância da ciência no processo de tomada de decisão, sobretudo para lidar com crises coletivas – como a sanitária em que vivemos. Se, para além das obtusas tragédias, a pandemia trouxe algum benefício, foi precisamente este: o de reafirmar o papel da ciência como um guia das decisões da sociedade. Mas o quanto a ciência está próxima de nós? Temos acesso fácil às informações científicas?
No Brasil de 2021, a ciência é pop. Para quem usa o Twitter, é evidente o crescimento no interesse dos usuários pelo consumo de informações científicas. É evidente que os cientistas – e os jornalistas, no consórcio de veículos de imprensa, projeto que inclusive foi premiado – preencheram um vácuo informativo na pandemia.
Você provavelmente se lembra onde estava em março de 2021. Estávamos atordoados nas primeiras semanas da pandemia e de repente os dados de mortes e internados pela Covid-19 pararam de ser divulgados pelo Ministério da Saúde. Quem ocupou esse vácuo de fonte de informação foram os cientistas, que se projetaram nas redes sociais. O resultado: a popularização da ciência. Já há números que atestam o sucesso dos “cientistas influencers” em 2021, sobretudo no Twitter.
Do início da pandemia para cá, os cientistas influencers – com destaque especial para Átila Iamarino, um dos primeiros nomes a se destacar no Twitter – passaram a fazer divulgação científica. A prática é diferente do jornalismo científico, vale destacar. A divulgação científica está normalmente associada à tradução de um conteúdo científico, com linguagem simples, direta, objetiva, e algum apelo audiovisual. O divulgador é como um tradutor da ciência, que mostra ao público leigo a utilidade da pesquisa, além de como ela foi feita.
Já o jornalista de ciência precisa se aprofundar para entender o que torna a ciência confiável. Sob a responsabilidade da ética profissional, o jornalista deve ter compromisso com o interesse público. Ou seja, é dever do repórter apurar e escrever movido por uma preocupação de investigar se determinado estudo é de interesse da sociedade, como o assunto vai repercutir, em qual contexto a investigação está inserida e como pode ser feita a publicação.
Há, portanto, uma responsabilidade ética e profissional, por parte do jornalista, de tentar entender como o assunto vai repercutir no público. Ao jornalista, cabe ainda contrapor os resultados dos estudos com especialistas que não tenham sido autores da pesquisa, para aferir a confiabilidade da metodologia, do pesquisador, da investigação como um todo – sobretudo se for um estudo preprint.
Faço essa distinção porque não me parece que esteja claro, para muitas pessoas com quem converso fora das redações e da academia, o papel do jornalismo e da ciência. Precisamos saber que nem todos conhecem, por exemplo, como é feita a produção de notícias ou como é desenvolvido um estudo científico.
Percebo esses fenômenos, de maneira mais contundente, nos últimos meses. Tenho lido e feito cursos sobre divulgação científica, jornalismo científico, mudanças climáticas. Entrei em um Mestrado para estudar as alterações climáticas e a sustentabilidade no âmbito da educação e da comunicação. Só então comecei a entender a complexidade da situação em que estamos. Não é uma crise somente climática. Essa é a ponta do iceberg.
A burocracia das siglas
Nesse período de estudos e leituras mais aprofundadas sobre a crise (social, econômica, pandêmica, climática etc.), dei-me conta ainda que muitas informações tidas como básicas pela ciência – consolidadas há anos – não são óbvias para a maioria de nós. Essas informações também não estão facilmente acessíveis à sociedade em geral. Quando estão, são muitas vezes cifradas.
Como falei anteriormente, a crise não é só climática. O desequilíbrio ambiental é sintoma. Nos últimos dois anos, o modo de funcionamento da humanidade entrou em crise, como disse o filósofo indígena Ailton Krenak em abril de 2020. Estamos perdidos em busca desse novo modo de funcionamento como humanidade. As discussões são complexas, as soluções não estão dadas e o aspecto racional não é suficiente para explicar a apatia da população.
No curso de Jornalismo Científico, do Knight Center of Journalism – um evento restrito a quem tem Internet e tempo -, tive contato com alguns assuntos pela primeira vez. Exemplo: “Um guia para os perplexos”, publicado em setembro último, pelo Observatório do Clima e pela LACLIMA (Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action). A LACLIMA é uma rede de advogados especializados em mudanças climáticas na América Latina.
Após o sumário, as primeiras páginas trazem uma lista de siglas e expressões usadas pela UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change, em português: Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas). O próprio manual enfatiza: “são tantas” as siglas. Pois é, a lista inclui 5 páginas, somente de siglas, e a maioria delas só faz sentido se a pessoa tiver conhecimentos em inglês, já que as letras são as iniciais de palavras na língua inglesa.
Quão excludente são essas siglas? Essas “pequenas” burocracias não afastam ainda mais o debate das pessoas? Por que não simplificamos? Como simplificamos? Afinal, quem queremos incluir e excluir do debate das mudanças climáticas?
Ao divulgar esse manual, o Observatório do Clima faz um trabalho extremamente importante de informar e nos incluir – sobretudo, nós, jornalistas, e os advogados – na causa climática. O documento é um excelente guia. Informativo, didático, colorido, lúdico. Simplifica bastante o assunto, com uma linguagem objetiva e abordagem pedagógica. Mas não pude deixar de me incomodar com a lista interminável de siglas, que tornam algumas discussões ainda mais encasteladas. O guia é apenas um exemplo para nos fazer refletir: no que estamos falhando e no que estamos acertando no diálogo, na educação e na comunicação sobre a emergência climática?
Apatia, informação e justiça climática
A questão das siglas é um sintoma. A raiz desse problema é anterior: não é fácil mudar comportamento. Se fosse, o que ainda explica tantos fumantes no mundo, apesar das pesquisas que atestam risco elevado de câncer de pulmão e outras doenças?
Na COP-26 e na discussão climática como um todo, se queremos engajamento, participação coletiva, comunhão global, inclusão, por que burocratizamos a linguagem e o acesso à informação? Nós, pesquisadores, cientistas, educadores, precisamos repensar o modo de funcionamento da nossa prática. Krenak propõe uma transformação do modo de funcionamento que é estrutural do modelo socioeconômico. Mas o primeiro passo é local: essa mudança, antes de ser global, é no campo, no terreno, na comunidade. Como? Estamos descobrindo, já com algumas tentativas em andamento. Uma delas é esta, sobre a qual já falamos no Bemdito.
Se já temos consenso científico sobre a atividade humana como indutora das alterações climáticas, relatórios detalhados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (o IPCC) desde 1988, eventos climáticos extremos cada vez mais noticiados na imprensa mundial, o que falta para uma mudança de comportamento? O que falta para sensibilizarmos familiares e amigos, mas também alunos e leitores?
Creio que nos falta apatia. Se há um excesso de informações cientificamente embasadas sobre as causas e os impactos da emissão de gases do efeito estufa, torna-se difícil entender essa apatia somente sob o aspecto racional. Algo nessa conta não está fechando, e creio que nos falta entendimento sobre a influência dos fatores emocionais nessa apatia.
Na discussão “apocalíptica” sobre as mudanças climáticas, alguns novos conceitos como “eco-ansiedade” ganharam evidência. Pesquisas preliminares, com dados divulgados em setembro, já mostram que é global o fenômeno, entre os jovens, da ansiedade climática, de sentimentos de traição em relação ao governo e de injúria moral. Se a discussão climática gera ansiedade, estresse, medo, quem quer ir em direção a esses sentimentos negativos?
A estratégia não passa pelo alarmismo, pela abordagem apocalíptica. O enfoque em “perdas”, por exemplo, em tragédias, pode ser contraproducente. Há um caminho que começa a ser discutido entre os pesquisadores: a associação direta entre mudanças climáticas e saúde. A apatia pode começar a ser transformada se a salvação do meio ambiente estiver relacionada com os benefícios à saúde que essa postura pode trazer para cada um, individualmente, em cada contexto socioeconômico e cultural.
Números já mostram desde 2015 que a maioria dos estadunidenses, por exemplo, preocupa-se com as mudanças climáticas. Mas eles não estão dispostos a pagar o preço disso. E me pergunto: quem tem o dinheiro para pagar o preço? Se quem dispõe das condições financeiras não está disposto a pagar, por que esperar que uma pessoa desempregada, por exemplo, esteja? A discussão sobre mudança climática é um debate sobre justiça climática.
O modo de funcionamento da sociedade entrou em crise, Krenak. O modelo econômico atual é insustentável. Mas nós, indivíduos, também estamos em crise de paradigma. A sensação é de que colidimos na ponta de um iceberg, mas não podemos ser alarmistas. Temos um problema, mas não podemos focar nas perdas. Um naufrágio é iminente, mas há chances de sobrevivência, mitigação e adaptação. A ciência nos diz que precisamos mudar hábitos de consumo, mas nem todos acreditam na ciência ou querem mudar o comportamento.
A solução está sendo gestada, e os países estão agora reunidos na COP-26 na busca por soluções em consenso global. Precisamos que os governos, a ciência, o jornalismo e o mercado dialoguem. O nosso futuro depende da atuação desses atores. Por um lado, não temos tempo a perder, mas por outro, não podemos esquecer que parte da população mundial ainda segue excluída do debate e da tomada de decisões.
No complexo caleidoscópio da questão climática, uma certeza: a informação restrita, encastelada, burocratizada, cifrada, a começar pelo “simples” uso de siglas em eventos como a COP, já não tem mais lugar no modo de funcionamento da humanidade pós-pandemia. Informação é poder.
PS: E a desinformação é assunto para a próxima coluna.