A grande mídia vai apoiar a 3ª via?
Ninguém esconde mais: o mundo político brasileiro só pensa numa coisa, as eleições de 2022. Embora o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) só aponte o início da campanha para daqui a oito meses, já tem muita gente trabalhando e se movimentando no cenário. Legendas discutem candidaturas, possíveis alianças e até a formação de federações partidárias, um drible institucional para escapar da degola da cláusula de desempenho e que pode levar algumas siglas à morte por inanição de recursos dos fundos públicos. Diante do fim de seus mandatos, políticos fazem cálculos mirabolantes para garantir que não vão limpar as gavetas daqui a um ano. Institutos de pesquisa, empresas de brindes, produtoras de vídeo já se insinuam nos comitês, mas de forma sorrateira, subterrânea até, já que é preciso respeitar as datas do calendário oficial. Mas a fauna do mundo político também inclui espécies que gravitam em torno dos núcleos partidários – repórteres, analistas, assessores, influenciadores – e elas não estão paradas. Pelo contrário.
Já se percebe algum alvoroço nas redações diante da disputa do ano que vem. Planejamentos começam a ser feitos, equipes estão sendo recompostas, e o forno das conjecturas está pelando de tão quente. É a temporada dos balões de ensaio, das apostas livres e das análises mais estapafúrdias que ajudam a moldar o jornalismo freestyle. Tentando atrair a atenção do público, a mídia coloca lenha na fogueira, salpicando um punhado de notícias misturado com rumores, muitos deles inflados pelos próprios partidos. É um jogo sujo, mas que interessa aos dois lados. Legendas testam nomes e medem reações populares. Meios de comunicação abastecem seus públicos com “informações de bastidor”, “análises em primeira mão”. Mas é preciso considerar mais uma coisa: a maior parte do jornalismo praticado no país é feito por organizações que objetivam lucro. São empresas. Portanto, têm suas próprias estratégias comerciais, interesses que acabam por alterar suas pautas jornalísticas. Dito de outro modo: a imparcialidade e o apartidarismo vão para o espaço, ainda mais num contexto com tantas pressões como é o das campanhas.
É por isso que os políticos não são os únicos na mira dos mais exigentes. Jornalistas e meios estão sendo monitorados, e críticas começam a aparecer sobre possíveis adesões a candidatos. Em outubro de 2022, os eleitores terão que escolher novos deputados estaduais (distritais no DF) e federais, senadores e governadores, mas a eleição mais ruidosa sempre é a que definirá os inquilinos dos palácios da Alvorada e do Jaburu, presidente da república e vice.
Nas últimas semanas, com as mobilizações no PSDB, PSD, PDT e Podemos, as cabeças se voltaram para a insistente expressão “Terceira Via”. Como até os postes imaginam, a disputa pela faixa presidencial tende a ser mais uma vez ultra-polarizada, opondo Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. Um caminho do meio seria conveniente, defendem aqueles que não aderiram a nenhum dos pólos. Após tumultuadas prévias, os tucanos definiram João Dória como pretenso ímã dos votos dos descontentes. A aspiração é a mesma por parte de Ciro Gomes, do PDT, e de Rodrigo Pacheco, já sinalizado pelo PSD como seu pré-candidato. As sondagens eleitorais apontam que nenhum deles empolga o eleitorado, mas o recém-filiado ao Podemos, Sergio Moro, engrossa a fila dos pretendentes.
É legítimo e esperado que esses gestos no tabuleiro político atraiam a atenção geral e garantam generosos espaços na agenda midiática. Pré-candidatos são cortejados por entrevistadores e passam a peregrinar por estúdios de TV. Mas setores influentes nas redes sociais passaram a criticar parte da grande mídia denunciando complacência e algum adesismo à chegada de Moro no xadrez político. A queixa não é ao palco oferecido, mas a amnésia seletiva de sua vida pregressa. Sua imagem de juiz que combate a corrupção se mantém, mas esquecem que fez parte do governo Bolsonaro e que foi considerado parcial pelo Supremo Tribunal Federal em processos contra o ex-presidente Lula, por exemplo. As falhas na memória não seriam resultados da incompetência jornalística, mas contribuiriam para a cristalização de uma imagem favorável daquele que pode ser o candidato da “Terceira Via”.
Mas alguém aí pode perguntar: mas se a mídia é empresarial e tem seus próprios interesses, ela não pode ter candidato? A resposta é: sim e não. Organizações jornalísticas podem manifestar publicamente suas preferências eleitorais, expressando seus desejos e até incentivando que seus públicos também depositem sua confiança em tais nomes. Mas tal preferência não pode contaminar os processos de produção do noticiário, que precisam garantir pluralidade de vozes e buscar equilíbrio de espaços entre os candidatos. De forma concreta, as empresas jornalísticas podem assumir que apoiam – como empresas! – tais candidatos e partidos, mas não podem – como meios de comunicação! – corromper suas coberturas jornalísticas para favorecer tais preferências. É um esforço um tanto esquizofrênico, mas possível, conforme se percebe no exemplo de países como Estados Unidos e França, onde é comum que veículos manifestem suas predileções políticas, mas trabalham para blindar o noticiário dessas interferências.
No Brasil, veículos como O Estado de S.Paulo e Carta Capital já assumiram publicamente que tinham candidatos em eleições passadas, mas essa transparência é quase uma exceção. A maior parte dos meios não torna isso visível, o que não significa que não tenha suas preferências. As empresas têm, em maior ou menor grau, simpatia ou adesão. A meu ver, o problema real não é uma empresa jornalística alinhar-se a uma candidatura. Pior é fingir imparcialidade e apartidarismo, manipulando o noticiário de forma sorrateira para privilegiar um lado em detrimento de outro. As formas como isso é feito são conhecidas: em situações tensas, projetar imagens ponderadas e lúcidas dos candidatos prediletos, facilitando seu lado conciliador e pacificador; em circunstâncias diversas, enaltecer deslizes, falhas ou contradições de candidatos que se quer combater; em episódios complexos, criar explicações simplistas ou alimentar falsas equivalências de modo a destacar as saídas favoritas.
Há riscos para o jornalismo quando as empresas do setor pendem para um lado? Sim, à medida que o público passa a confundir candidato e meio de comunicação, e quando há frustração política, o ônus recai também sobre a mídia. É um perigo para a credibilidade. Por isso que diversos meios preferem operar às sombras, deixando de lado a transparência de seus processos. Há riscos para a democracia ou para os eleitores? Sim, pode haver, caso as manipulações e frustrações sejam tamanhas a ponto de gerar descrença no sistema de escolha e do poder do voto dos indivíduos.
A grande mídia vai embarcar na canoa da Terceira Via? Ainda é cedo para dizer, ainda que já se perceba comentaristas políticos receptivos aos nomes que escapam à polarização. A justificativa ensaiada pode ser: “o país está muito dividido e não podemos tornar mais aguda esta situação. Precisamos trabalhar pela unidade e construir uma alternativa aos extremos”. Os gregos mais antigos diriam que este é um raciocínio sofismático, isto é, parece ser verdadeiro, mas está apoiado em bases não totalmente verdadeiras. Sim, o Brasil está dividido, e a tendência é que esta polarização persista até porque o nosso sistema eleitoral foi desenhado para isso. Eleições em dois turnos contribuem sempre para a polarização, pois promovem à disputa final os dois mais votados.
O raciocínio cínico dos adesistas à Terceira Via tenta se equilibrar em dois enganos. O primeiro é achar que se deve trabalhar pela convergência e pela unidade. Mas estamos falando de um processo adversarial, de disputa de visões e argumentos. Por isso que se chama eleição, porque temos que escolher um em detrimento de outro! O segundo engano é considerar que articulistas e formadores de opinião devam “construir uma alternativa aos extremos”. É um argumento paternalista e arrogante porque acredita que os eleitores precisam de tutela e que jornalistas são as melhores pessoas para guiar as consciências políticas de todos.
Transparência nos partidos, nas plataformas eleitorais e nos desejos políticos das cúpulas jornalísticas é muito mais necessário do que a benevolente preocupação de ensinar o povo a votar. Se houvesse transparência antes, não haveria oportunidade para a edição do debate Lula-Collor manipulado pela TV Globo em 1989 e nem espaço para o editorial de O Estado de S.Paulo de 2018 que equiparava Bolsonaro e Haddad, considerando ser aquela uma “escolha muito difícil”.
A adesão da grande mídia à “Terceira Via” não é um problema definitivo. Ela é uma possibilidade, nem tão inédita – conforme mostra a história -, mas que pode aprofundar ainda mais o fosso para onde foi empurrada a sua credibilidade. Que o fosso seja só um buraco e não uma cova.