Bemdito

A linguagem que (não) nos define

Como as nossas palavras definem o que somos neste mundo e o modo que nos apresentamos socialmente
POR Cláudio Sena

Como as nossas palavras definem o que somos neste mundo e o modo que nos apresentamos socialmente

Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com

Quando esporadicamente sento ao lado do meu vizinho pescador no interior do Ceará e iniciamos conversa sobre peixes, parece que troco de cérebro. A gramática do mar é acionada. Cangulo, Pargo, Ariacó, Cioba, Cavala, Badejo e um imenso estoque de palavras me colocam distante da sala de aula, da publicidade e da sociologia de todos os dias. Não chego leigo a este universo do mar. Herdei, graças ao meu pai e ao meu irmão, uma intensa vivência junto à água salgada que me coloca, pelo menos um pouco, apto aquele papo de calçada.

Esses encontros de gente e de linguagens são permanentes na vida da gente. Na oficina mecânica, nós, os não chegados aos automóveis, somos apresentados às ventoinhas, às velas de ignição, aos pistões, às válvulas, às correias – que, como se não bastassem, ainda são dentadas -, filtros, bombas e a um amplo dicionário de peças que, de acordo com o mecânico, compõem um carro. O que nos espera no ambiente acadêmico das universidades é aquela velha e boa linguagem douta, marcando a diferença e a distância esperada entre alunos e professores.

Em tempos de pandemia, nos tornamos mais profissionais de saúde. Pela imposição da realidade, aprendemos a usar com destreza “assintomático”, “oxímetro”, “período de incubação”, “situação epidemiológica”, “saturação de oxigênio”, “sorologia”, “imunológico”, “hidroxicloroquina”, “azitromicina”, “intubação”. Fora as siglas e abreviações tais como PCR, IGA, IGG, OMS, PFF2 ou N95 que agora somam-se ao já bastante conhecido SUS. Vivemos tanto tempo sem tomar conhecimento e sem recorrer a esses termos. Mas foi preciso aprender rápido por questões de sobrevivência.

Seguimos assim, vagando, medindo as palavras a partir dos interlocutores e das situações, mas também sendo atingidos pelos o que os outros nos falam. A linguagem resiste, localiza, identifica, fere, conforta, cura, define o que somos neste mundo e o modo que nos apresentamos socialmente. Mas, para que haja o mínimo de coesão social, nos deparamos com espécies de reguladores, a partir de sistemas incorporados logo pela criança que encontra na escola uma complementaridade ou mesmo oposição ao que se ouve e fala em casa e na rua. Daí para frente é experimentação e ampliação de repertório.

Há os que enganam, os que são honestos e os que se adaptam, jogando o jogo da linguagem com desenvoltura. Estes últimos passeiam pelos diversos campos de socialização com um certo conforto. No trabalho, montam as frases de acordo com o dicionário corporativo. Entre amigos, libertam-se por meio de palavrões que abrigam desabafos. Junto aos filhos, medem as palavras. Não queiram saber, e nem nos diz respeito, como se manifestam nas esferas mais íntimas, se é que vocês me entendem.

“As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”, disse o filósofo Ludwig Wittgenstein. Mas o que ocorreria na interseção, no entre, no cruzamento, quando somos confrontados pelos momentos de sociabilidade que não escolhem distinções de classe e nem de grupo social? As incorporações de personagens expressas pela maneira de falar, ouvir e reagir operam de acordo com interesses, no intuito de tirar vantagem, de acomodar-se, de impor-se, de igualar-se, de acordo com a situação.

As condições sociais (tão presentes nesta coluna), desta vez impressas na linguagem, mediadora versátil, parecem interferir constantemente neste processo do que somos e do que parecemos ser. É inevitável, a vida nos coloca em situações nas quais somos obrigados a recorrer a este armário cheio de roupas que, quando combinadas de modo aleatório, podem provocar um visual estranho aos olhos daqueles não habituados às misturas de estilo.

Cláudio Sena é professor e publicitário. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.