Bemdito

Pequenos seres humanos que somos

A superioridade diminuta do homem em relação à inteligência da natureza
POR Cláudio Sena

A superioridade diminuta do homem em relação à inteligência da natureza

Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com

Em tempos de enclausuramento dentro de quartos, salas e cozinhas, aqueles da cidade identificam e sentem falta de uma tal conexão com a natureza. Talvez seja justamente aí que resida o equívoco, neste apartar convencionado entre o que é do homem e o que não é, desenhado pelas linhas das culturas. Durante esta interminável pandemia, tais limites aparecem turvos e, caso desejemos investir ainda mais nesta partilha, nós, humanos, parecemos ter perdido posição neste ilusório campo de batalha. Os golfinhos nos canais de Veneza e a raposa deitada tranquila no gramado do parque citadino e ecológico do Cocó são pequenos sinais visíveis da vitória daqueles que não foram acometidos pelo vírus que nos amedronta.

Antropólogos tentam há décadas refazer esta compreensão do mundo, ao tirar este filtro, muitas vezes recorrido como ferramenta didática por eles mesmos, para colocar-se em outras cosmologias. Tarefa difícil. É possível que indígenas jivaros, tão evidenciados nas pesquisas de Philippe Descola (já que eu não fui às tribos do alto Amazonas, é preciso dar os créditos), observem para isto tudo e não entendam nada. Ora, para eles “o que pertence à natureza pertence à cultura”, não há divisão. A formiga, a pedra e ele próprio, tudo em pé de igualdade. Ótica difícil para nós da cidade. Para eles, a diferença é questão de aparência. Para nós também, não? Aí que está: não, porque, inevitavelmente, hierarquizamos esta aparência e cravamos uma alma àquilo que é próprio somente aos humanos e às vezes aqueles animaizinhos domésticos que moram conosco e que, carinhosamente, chamamos de pet. Para essas comunidades ancestrais que habitam este lado do continente muito antes da gente, a mangueira tem alma e é natural acreditar nisso.

Ora, ao cérebro urbanóide que busca soluções práticas, a consequência disso poderia ser uma possível reconciliação no caminho deste processo a partir da conversão de bilhões ao veganismo ou coisa do tipo, um passo extremado, bem além do esforço do uso canudo de ferro para salvar os animais marinhos. Segundo os jivaros, não é bem assim, pois, mesmo sem passar nos supermercados, eles incluem também animais em seu cardápio. O que muda é a relação que eles parecem ter com aquilo que os cerca, o valor que é atribuído ao que se cria ou se mata para comer, há afeto, há sentimento, há briga, há reconciliação. Foi isso que Descola descobriu embrenhando-se na mata e o que nos coloca na condição de existir neste planeta no mesmo grau de importância do alface que vai à mesa. Não que sejamos menores, simplesmente somos e existimos tanto quanto o que nos rodeia e que não foi feito pela gente. Um pensamento desse é de chacoalhar qualquer nascido e criado na cidade. Apequena qualquer um. E quem gosta de ser diminuído, pois não?

É muito mais cômodo acreditar que controlamos o mundo, que somos superiores, que as forças humanas sobrepõem-se às inteligências da natureza. Porém, ao olhar para a janela do apartamento cercado por mais apartamentos e mirar os passarinhos que voam sossegados sem tomar conhecimento da pandemia, somos forçosamente diminuídos.

OBS: A propósito, antes que o leitor deste texto aponte, com razão, a brecha para a contradição, reconheço: até essa divisão que fiz entre os da cidades e os da floresta é, de certo modo, preconceituosa e não faz o menor sentido aos olhos dos jivaro. São armadilhas e enclausuramentos aos quais também estamos acometidos pela linguagem e pelo texto. Resolvi correr este risco.

Cláudio Sena é professor e publicitário. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.