Bemdito

Fake news na CPI da Covid: a mentira como tratamento precoce

A CPI da Covid-19 diz muito sobre o que há de mais recente na produção bolsonarista de fake news
POR Camila Holanda

A CPI da Covid-19 diz muito sobre o que há de mais recente na produção bolsonarista de fake news

Camila Holanda
camilasoaresholanda@gmail.com

“Não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras”. 

(Ex-procuradora geral dos EUA, Sally Yates, em artigo publicado no USA Today em 19 de dezembro de 2017)

Vacina produzida com células-tronco extraídas de fetos abortados, pênis na porta da Fiocruz, tapetes com imagem do Che Guevara, defesa do chamado tratamento precoce contra a Covid-19 e outras mentiras: a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 se converteu numa vitrine do que há de mais recente na indústria de fake news bolsonarista. 

Os pontos acima citados parecem ter saído de uma corrente do WhatsApp, daquelas que a gente bate o olho e já sabe que são mentiras ou informações intencionalmente distorcidas. Mas foram abordadas durante depoimentos e questionamentos na CPI, que deveriam ser momentos relevantes e sérios na apuração de ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia da Covid-19 no Brasil. 

Uma das mentiras que chama a atenção é o questionamento realizado pelo senador cearense Eduardo Girão – ou Eduardo “Giroquina”, como diz a jornalista Inês Aparecida, do podcast As Cunhãs -, ao médico pesquisador Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, que produz a CoronaVac no Brasil. De acordo com o senador, um estudo norte-americano publicado na China, em 9 de abril de 2020, sobre a vacina Sinovac, faz menção às células HEK293F. Segundo Eduardo, “essas células seriam extraídas de fetos abortados”. 

“Eu queria saber se é possível o Butantan disponibilizar amostra laboratorial da CoronaVac ou permitir que um laboratório independente faça a referida análise?”. Ao que Dimas respondeu: “Senador, estas células são disponíveis comercialmente, não entram na produção da vacina”. 

Supondo que células-tronco de embriões fossem usadas para a produção da vacina, ou seja, para salvar vidas, o senador iria se opor à imunização da população em meio a uma pandemia que já tomou mais de 450 mil vidas? Seria a vacina, afinal, um estímulo ao aborto ou à salvação de vidas? 

A relação do senador com a pauta de cerceamento da decisão das mulheres pelo aborto é antiga, a propósito. Recentemente, ele propôs o PL n° 5435/2020, que reforça a maternidade compulsória e confronta a legislação brasileira que já prevê a opção de abortar em caso de estupro.

Em meio às narrativas sobre o pênis na porta da Fiocruz, a ampla eficácia da cloroquina contra a Covid e a introdução de células de fetos abortados nas vacinas, é importante refletir sobre como o governo federal e a base de apoio têm o desejo de controlar o que está no âmbito da vida privada da população. Enquanto isso, falsamente delega a decisão do uso de máscara e medicamentos às pessoas, por exemplo, e traz o aborto à pauta quando o assunto é vacina. 

Em janeiro de 2018, o Papa Francisco publicou uma fala em seu Twitter que até hoje repercute quando se fala em fake news: “Nenhuma desinformação é inofensiva; fiar-se daquilo que é falso produz consequências nefastas”. Pesquisa da Avaaz, publicada em 4 de maio de 2020, mostra que nove entre 10 brasileiros entrevistados pelo instituto no País viram pelo menos uma informação falsa sobre Covid-19, à época. A pesquisa mostra também que sete em cada 10 entrevistados no País acreditaram em uma informação falsa disseminada sobre a doença.

“Os internautas brasileiros acreditam mais nas informações falsas sobre o coronavírus que os italianos ou os estadunidenses”, conclui a pesquisa, que contextualiza: o WhatsApp e o Facebook estão entre as fontes mais citadas pelos brasileiros para todas as declarações falsas abordadas. A pesquisa foi conduzida virtualmente com pessoas entre 18 e 65 anos. Foram entrevistadas 2.001 pessoas no Brasil, 2.002 na Itália e 2.000 nos Estados Unidos, entre os dias 9 e 15 de abril de 2020. 

À época da pesquisa, as pessoas entrevistadas pela Avaaz elencaram afirmações falsas, como “o novo coronavírus foi criado em um laboratório secreto na China”; “o novo coronavírus é como uma gripe, tem os mesmos sintomas e uma taxa de mortalidade igual ou inferior à gripe comum”; e “a inalação de ar ou vapor quente pode matar o novo coronavírus”. 

Nos últimos anos, observamos uma crescente mobilização que ameaça as verdades e, paralelamente, uma ascensão de discursos falsos, ditando a opinião pública e a gestão bolsonarista durante a pandemia. A eleição de Jair Bolsonaro – tal qual a de Donald Trump, guardadas as proporções – tem base em um ativismo digital que prolifera narrativas calcadas em mentiras: o kit gay para crianças de 6 anos, que teria sido distribuído nas escolas, ou o homem que deu uma facada em Bolsonaro, seria filiado ao PT e teria aparecido em foto com Lula. 

Em 2019, inclusive, o chamado Gabinete do Ódio – formado por servidores ligados ao filho 02 de Bolsonaro, o Flávio – foi alvo da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, uma apuração conduzida pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal para investigar a existência de uma indústria de notícias falsas pulverizada nas redes sociais.

A falta de credibilidade da gestão federal é tanta que, em meados do ano passado, foi criado o consórcio de veículos de imprensa reunindo  os Grupos Folha, Globo e Estado para informar dados da pandemia de Covid-19, com base nas estatísticas dos Estados. Afinal, sabemos a quem interessa jogar com a desinformação em meio a uma das maiores crises de saúde pública da história.

Camila Holanda é jornalista e mestranda em Comunicação na UFC. Escreve conteúdos com perspectiva de gênero.

Camila Holanda

É jornalista e mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC). Escreve conteúdos com perspectiva de gênero.