Bemdito

Apego

Sim, é preciso consumir menos e melhor, mas aqui deixo uma provocação: que tal aceitar e acolher o apego também?
POR Alice Dote

Sim, é preciso consumir menos e melhor, mas aqui deixo uma provocação: que tal aceitar e acolher o apego também?

Alice Dote
alicedote@gmail.com

É quinta-feira e, ao criar um novo documento em branco no Word, me esforço para lembrar o que vesti essa semana. Foram dias em que muitas roupas — muito mais do que o habitual — passaram por mim, mas não se demoraram.

As peças, que agora surgem borradas e misturadas enquanto tento evocá-las, vestiram e desvestiram meu corpo, assim, rapidamente: o tempo necessário para um clique, uma prova, uma decisão. Movimentaram-se pela casa preenchendo sacolas, amontoando-se em cima da cama, obedecendo ao ritual de desdobrar-sacudir-redobrar, examinadas em seus zíperes, botões, bolsos, barras e etiquetas, lavadas, estendidas e engomadas. Em uma planilha do Excel, uma coluna as empilha em sucintas identificações, como empilhadas estão elas, há meses ou anos, no limbo da espera de um destino.

Já faz alguns anos que organizo bazares de roupas. Acabo de perceber que todos eles aconteceram enquanto eu morava na casa de meus pais. A preparação era trabalhosa e divertida: eu, minha mãe, alguns amigos separávamos as peças, as provávamos para sentenciar seu rumo, as categorizávamos, precificávamos e etiquetávamos. Em araras, blusas e saias ansiavam por chamar a atenção de seus possíveis novos donos — aquelas rejeitadas, as sobras ao final do dia, guardavam-se em uma mala, guardando também a expectativa da próxima chance.

Quando me mudei, na forçada escolha entre o que trazer e o que deixar, a necessidade de um novo bazar fazia-se nítida. À mudança de endereço, reuniam-se outras: a das medidas, a de estilo, a de espaço, a de cotidiano. Preciso fazer alguma coisa com essas prateleiras cheias de saltos que já não percorrem madrugadas, penso há alguns anos, enquanto as prateleiras lá permanecem, a maior parte do tempo solenemente ignoradas. As coisas foram demorando-se, ora resistindo, ora sucumbindo ao tempo. Não raro, como venho partilhando, são redescobertas: nessas horas, em que constato que não me desfiz de algo que, outrora, já não me dizia tanto, agradeço ao meu apego.

“Cinquenta coisas para desapegar”, “regras do desapego de roupas”, “dez coisas que você deve eliminar do guarda-roupa”, “passos para desapegar de objetos de valor sentimental”, “como desapegar de roupas e viver uma vida mais leve e feliz”. Receitas e guias para o fácil descarte — ou desapego — a que roupas (mas também relações) estão, por sua julgada superficialidade, condenadas.

Uma prometida desintoxicação instantânea do apego, como a que vive, a cada manhã, Leônia, uma das cidades invisíveis de Italo Calvino. Ao deitar fora, com devoção à purificação que abre passagem ao novo, os restos da existência de ontem, Leônia admite ser sua verdadeira paixão “o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza”. As coisas, assim como as relações, resignando-se à sua inevitável obsolescência, não são feitas para durar, mas, para se seguirem umas às outras initerruptamente. O imperativo de leveza liga-se ao de mobilidade: o desprendimento das amarras das coisas e relações, facilmente entulhadas, descartadas e substituídas, nos permitiria seguir insustentavelmente mais leves. Limpeza, ordem e leveza é o que devemos almejar em nossos armários e nossas vidas. O título de uma matéria garante: “jogar fora um objeto por dia vai fazer você se sentir melhor”.

Lembro-me de programas que assistia quando adolescente em que, sob o pretexto de uma grande transformação na vida dos participantes, os apresentadores arrancavam peças de roupas de suas mãos e as jogavam no lixo. Sacos e sacos de roupas indignas descartadas. Sem dó. Empurravam o pobre ser vestido no seu traje preferido em uma cabine revestida por espelhos para assistir sua vergonha frente à imagem refletida. Sem dó. Sinto-me constrangida ao lembrar a naturalidade com que aquelas roupas eram destinadas, às vezes com objeção e tristeza de seus donos, ao descarte.

“Passei os últimos quarenta anos procurando um casaco feio que perdi”. Essa semana, comecei a assistir uma série sobre o vestir e suas histórias, e o segundo episódio me acorda com essa frase desavergonhada. Que ofensa ao desapego.

Um tanto desajustada aos atalhos para a leveza prometida — uma leveza que eu nunca consegui alcançar — eu preciso de tempo para maturar a relação de desapego das coisas que vêm acontecendo junto a mim. Percebe como essa palavra, aliás, tem designado não só uma prática, mas os próprios objetos dispensados? “Eis aqui meus desapegos”, se diz. É curioso perceber que aquilo de que decidimos nos livrar vem precedido de um pronome possessivo. Talvez eu não queira me livrar deles. Por isso, também, esses bazares têm acontecido a intervalos de tempo tão longos. Por isso, também, algum tempo foi gasto, durante essa semana, em experimentar novamente roupas que já tinham se conformado com minha renúncia a elas. Aqui, voltam os sempre presentes “e se”. E se nossos tempos — meus e das coisas — só estiverem passando por um momentâneo desajuste?

Não, isso não é um elogio ao acúmulo. Sim, precisamos de menos, muito menos, do que consumimos. Precisamos consumir menos e melhor. Precisamos investir de uso o que já temos. Mas, talvez, isso seja um convite a repensar a aversão ao apego, a essa ligação afetuosa e dedicada com as coisas do mundo — esses objetos que não só vemos ou tocamos ou usamos, mas aos quais, de alguma maneira, nos misturamos. Essa relação que, quem sabe, cultiva um pouquinho do que havia nos colecionadores de Walter Benjamin: um elo íntimo com seus pertences que nem sempre põe em primeiro plano o valor utilitário das coisas, sua serventia, a contagem de quantas vezes são usadas ao ano, mas a impureza das recordações que se desprendem delas, a paixão evidenciada na desordem do conjunto: para aquele que aceita e acolhe o apego, para aquele que não nega a afeição às coisas, “não é que elas estejam vivas dentre dele; é ele que mora dentro delas”, diz Benjamin.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.