Bemdito

As cidades e o sonho

Uma menina, um aquário e uma casa: memórias e lampejos de uma noite de sol
POR Iana Soares

Uma menina, um aquário e uma casa: memórias e lampejos de uma noite de sol

Iana Soares
ianascm@gmail.com

Uma menina está sentada no centro do pátio. No chão, azulejos vermelhos e amarelos estão sujos, muito sujos, cobertos por uma areia preta que vem de longe. Há árvores e arbustos ao redor. Agora, passo a mão no braço para lembrar do barulho que as folhas fazem quando encostam uma na outra. São sete horas da manhã e a menina talvez tenha nove anos. Nas pernas, estrelas. Nunca andou. Há uma luz sobre a cabeça. Ela levanta os olhos e vê que não existe teto. Alguém a observa do avarandado. Ela sabe? E se começar a chover?

À direita, um aquário da largura dos braços antes do abraço guarda um único peixe. Ele repete os mesmos movimentos: vai e volta para ir de novo. Tento contar o número de vezes que isso ocorre, mas perco a exatidão. Não é um peixe abissal, como nas outras noites. Quem se aproxima pode apontar a beleza da criatura amarela e vermelha, se tiver pressa em encaixotar as coisas do mundo. O mais difícil é manter o encantamento ao olhar pela segunda vez.  

A cidade onde moram o sonho, a casa e a vida está à esquerda. Tem nome de mulher, como todas as cidades do escritor que as torna visíveis. Tento abrir a porta, mas não há porta. Escuto as folhas, volto ao pátio, molho as mão na água represada. Não coloco os pés na rua, embora já antecipe algumas imagens para adivinhá-la antes do encontro, quando será possível investigar, fora, o que há também do lado de dentro. 

Escrevo para fazer a menina levantar. Para vê-la encostar a ponta do nariz no vidro do aquário e dar um nome ao peixe. Escrevo porque a menina jamais irá se levantar. Ela nunca andou, lembra? Escrevo porque mesmo com a certeza de que nunca sairá do pátio, nunca saiu, posso imaginar esse dia e descobrir, finalmente, o que ela viu lá fora. Escrevo para entender se sou a menina, o observador ou o peixe. A cidade, talvez.

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.