As coisas que perdemos no fogo

Escrevo este texto para ser publicado em um dia no qual eu não sei se haverá mais o Brasil como conhecíamos. Muitos dizem que nosso país foi vendido, rifado, acabado, que a democracia acabou, que as instituições não estão mais funcionando (ou estão funcionando muito bem, o que é uma perspectiva ainda pior). Mas eu particularmente vejo que o Brasil foi queimado, aliás, está sendo queimado. Nossa situação atual vai sempre da metáfora à própria concretude do fogo.

O título do texto de hoje é inspirado no conto homônimo da autora argentina Mariana Enriquez. Em “As coisas que perdemos no fogo”, ela narra um evento distópico e utópico ao mesmo tempo: por causa do alto número de feminicídios e pela imolação de várias vítimas, mulheres decidiram queimar-se em fogueiras por vontade própria. Se o destino é morrer queimada, elas querem viver queimadas: impor uma imagem de mulheres com cicatrizes extensas causadas pelas fogueiras nas quais elas mergulham de bom grado para lembrar a todos sempre que não podem ser controladas.

A autora transporta o terror e a sensação de desconforto para o nosso cotidiano, para aquelas notícias – como as de feminicídio – que vemos diariamente e passam sem maiores comoção. Se Enriquez faz isso na prosa com maestria em homenagem à boa literatura e à reflexão social, Bolsonaro faz isso diariamente da forma mais vil possível, porque o terror, o medo e o caos são suas armas políticas, pavimentadas pelo método de inflamar a cólera de uma base fiel que gosta de ver o país queimar em desgraça.

A primeira imagem que surge quando pensamos na destruição do governo atual por meio do fogo são os incêndios na floresta Amazônica, no cerrado e em basicamente qualquer bioma que pudesse ser desprotegido pelo Ministério da destruição do Meio Ambiente. A boiada tanto passou que deixou uma situação de caos ambiental – sem chuvas, tempo seco – que vai nos levar de volta ao tempo dos apagões em breve. Nem mesmo as termoelétricas – mais uma ferramenta de queimar o meio ambiente – poderão nos salvar da compra de velas (que com certeza vão aumentar de preço).

Chegando a quase 585 mil mortos por Covid-19 no país, é impossível esquecer que o ano de 2021 começou com as imagens desesperadoras da falta de oxigênio em Manaus. Imaginar, mesmo que por um breve instante, a sensação de sentir o pulmão queimando por não conseguir respirar é aterrorizante para qualquer ser humano, mas não comoveu quem só se importava em repassar para a população medicamentos com ineficácia e inutilidade comprovadas.

Nosso governo federal tem tanto apreço pela destruição, que deixou vacinas, testes para Covid e medicamentos avaliados em R$ 243 milhões vencerem, abandonados em um galpão do Ministério da Saúde, na cidade de Guarulhos, em São Paulo. Agora, todos esses insumos, que poderiam ter salvo tantas vidas, serão incinerados. Nada melhor do que uma fogueira animada para comemorar a omissão pública e a violação ao direito à saúde do povo brasileiro.

O fogo é sem dúvida útil para muitos atos construtivos: um deles é cozinhar, garantindo a alimentação de qualidade para combater a fome. Mas o Brasil não só voltou ao mapa da fome, como entrou novamente no mapa dos acidentes pela falta de acesso ao gás de cozinha.  Pessoas e famílias inteiras sofrendo queimaduras graves ao manusear álcool para conseguir cozinhar voltaram a ganhar as manchetes, junto com o preço do botijão de gás, que já ultrapassa os R$ 100. Não existe comentário sarcástico o bastante que dê conta de expressar a revolta com o fato de que outros brasileiros não só não têm o que comer, mas que correm o risco de morrer ao cozinhar o pouco que têm.

Se ainda lhe resta alguma dúvida de que o bolsonarismo é forjado na destruição pelo fogo, ainda falta lembrar do maior símbolo e do objeto de desejo de quem tem a violência antidemocrática como práxis política: as armas de fogo.  Em apenas três anos, entre 2017 e 2020, o Brasil dobrou o número de armas nas mãos de civis, chegando ao assustador número de 1,2 milhão de registros de armas ativos.

Aquele que aperta o gatilho que ativa o mecanismo de combustão e impulsiona a bala para fora do cano da arma encontra sempre o caminho para aumentar os números da violência no nosso país, sob o argumento fajuto de que “precisa se proteger” e de que “o povo armado não será escravizado”. Essas mesmas armas de fogo alarmam estudiosos da segurança pública, que alertam há anos que a maior presença doméstica delas é fator de risco para elevação do número de feminicídios e da letalidade desses crimes. Mas se as mulheres queimadas pelos maridos não comoveram a sociedade narrada por Mariana Enriquez, as mulheres vítimas de feminicídio por arma de fogo não comovem a sociedade que faz arminha com a mão.

Comecei o texto dizendo que depois dos atos antidemocráticos desse dia da independência, não sabemos se haverá o Brasil que conhecemos. Espero mesmo que não haja: que esse seja o último dia de impunidade de quem coloca fogo no Brasil. Nosso país se desfaz em cinzas e sabemos bem quem acendeu o fósforo.