Bemdito

Central do Brasil: cinema feito para durar

Longa dirigido por Walter Salles é souvenir de um Brasil em todos os seus tempos
POR Felipe Pinheiro

É revendo Central do Brasil, também pensando na gana por relevância e atualidade crítica imperada em nossas produções contemporâneas, o tal do “comentário social”, que me dou conta do quanto certos filmes nasceram preparados para envelhecer. Para terem a fortitude de suportar nas costas as areias do tempo e transcender os temas de seu período, eternizando-se como clássicos, não somente marcos de época. Central do Brasil é exemplo pétreo disto.

Lá se vão 24 anos desde que Josué, no relento da orfandade, aturdido de desamparo, a lágrima afrouxando a costura dos olhos, inventou um impulso de coragem e resvalou em Dora, também errante, também às cegas; e se acompanhando abriram caminho em um mundo que, nos melhores dias, os fazia vista grossa. Plantaram os pés em um chão que parecia ordenado a ejetá-los. Chamaram de existência o que a consciência os tentava a chamar de equívoco, indiferentes aos acidentes de percurso. Eram eles, os dois, o acidente de percurso.

Em Josué, já terrivelmente açoitado pela tragédia, mas irrenunciavelmente uma criança, e por causa disso, irrenunciavelmente um idealista, ainda queimava a fé na promessa de uma vida de maravilhas ilimitadas. Dora, para quem a idade já havia quebrado essa promessa, e sobre quem essas maravilhas decompunham em desengano e dor, arrendou o sonho de Josué, vendo nesse sonho a guia para adiar as dores dele, e, por ventura, prometer coisas novas às suas próprias.

Walter Salles amarra Dora e Josué no laço do flagelo e do desterro. Os atira no meio do êxodo de desenganados que transfunde gente entre o sertão e a metrópole. Tange os dois por estrada, vereda e porteira, pra correrem em busca do lugar de pertença do menino, munidos somente da esperança ingênua de que o menino, naquela estatura de vida, ainda havia de caber em algum lugar. E cabia mesmo. E acharam.

Na atemporalidade dessa jornada, na humanidade desses sujeitos e na universalidade dessa emoção, Central do Brasil envelhece com desenvoltura de grandeza. E embora possuísse em seu entorno de pobreza e desigualdade a plataforma ideal para descambar em desabafos políticos, entregou suas mensagens em postura intuitiva, trocando o comentário pelo olhar, a tese pela saga, o verbo pela imagem. O discurso não entra pelos ouvidos, entra pelo sangue.

Isso é triunfo que desataria em sorrisos orgulhosos os lábios de Vittorio De Sica, Luchino Visconti e Roberto Rossellini, os três reis magos do cinema neorrealista.

Um filme tão dado às pessoas, tão fundido a um país que, liberto de ser brasão de uma época, se pronuncia em cada tempo desse país, enraizando-se em seu âmago. Âmago, que é o único pedaço da gente preparado para envelhecer.A vida inteira de Dora, escrivã de encomenda, foi ouvir saudosos a falar dos sentimentos que não tinham aprendido a escrever. No momento de partir para longe de Josué, de volta às promessas que o futuro já não mais lhe fazia, Dora escreveu a ele os sentimentos que nunca tinha aprendido a falar. Em carta, que era sua única voz. Não voltou realizada, não voltou renascida, mas voltou, no âmago e na pele, preparada para envelhecer. Envelheçamos como Central do Brasil.